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O Faroeste dos desejos - resenha do filme “Ataque dos Cães” (alerta de spoiler)

O Faroeste dos desejos - resenha do filme “Ataque dos Cães” (alerta de spoiler)

Por  Katia Peixoto dos Santos

"The Power of The Dog" é uma adaptação da obra literária homônima, escrita pelo norte-americano Thomas Savage e publicada em 1967. O filme é um drama Western que deixa de lado os revólveres, rifles e portas bang bang para apostar nas imagens, ora de planos de detalhes minuciosamente trabalhados, ora de panorâmicas de paisagens desoladoras instigadas por cortes atemporais.

A fotografia, da australiana Ari Weigner, dá precisão cirúrgica ao roteiro e a direção da neozelandesa Jane Campion. O filme ganha sentido pela leitura atenta de nós, espectadores, nos detalhes imagéticos. Em "Ataque dos Cães", a antiga frase de Confúcio; Uma imagem fala mais do que mil palavras, rege o drama.

A adaptação do roteiro nos traz uma trama simples com apenas um núcleo cênico central, o do protagonista, portanto o foco fílmico gira em torno, praticamente, de quatro personagens, interpretados por atores incríveis que conseguem dar o tom dramático, ao ponto, aos personagens. São eles: Benedict Cumberbatch, como Phil Burbank; Jesse Plemons como George Burbank; Kodi Smith-Mc Phee como Peter Gordon e Kirsten Dunst como Rose Gordon.

Apesar de conter um roteiro simples "Ataque dos Cães" nos propõe alguns questionamentos profundos, isso acontece na medida em que começamos a vivenciar as fragilidades, as vulnerabilidades, as angústias, as dores e os desejos das personagens. Cada personagens traz consigo a vontade latente de ter o que deseja a qualquer custo, assim todas elas se mostram auto-centradas, frias, descontentes e enigmáticas.

Peter, mesmo demostrando suas habilidades e virtudes durante o percurso fílmico, está mais preocupado em fazer sua mãe feliz. Lembrando do ditado popular; cão que ladra não morde, talvez possamos por dedução, pensar que Peter representaria o contrário disso. Peter é o personagem que conduz a trama mas não está em algumas cenas principais, será que podemos pensar que ele seria a figura central da história? Seria Peter o narrador off desta trama? Fazendo uma pequena analogia com a vida, seria possível alguém dar um desfecho de algo sem precisar estar em todos os ambientes do qual controla, apenas por ter em mente planos diabólicos e executáveis?

E como se comporta Phil? O homem rude que vive sob a influência fúnebre de seu amigo, possível amante, Bronco Henry? É mórbido e sacro o altar de Bronco, o santo Henry ao qual Phil lhe dá fortes poderes, até mesmo de o fazer acreditar que os dois poderiam representar o modelo de Rômulo e Remo, os irmãos que fundaram Roma, criados e amamentados por uma loba. Logo, semi-animais ou semi-humanos? Até que ponto esse modelo delirante sustenta Phil e o afasta da realidade? Em que medida sua relação com Bronco é sacra ou profana ou as duas coisas? E Bronco Henry, quem é esse ser que mesmo morto rege a vida de Phil e o faz viver em eterno luto? A quem dar o poder de nos fazer ser e sentir?

Rose, ah Rose, quanto dela está perdido no seu olhar triste, angustiado e patético? Quem foi a Rose que tocava piano no cinema mudo da década de 1920? O que o piano representa para Rose?

George, o irmão de Phil, um homem bondoso, bem aprumado porém não tão inteligente quanto Phil, não tão belo como Phil, nem tão atlético como Phil, nem tão …. como Phil. Mas o que Rose pode ver nele? O consolo e a segurança que sempre almejou? Luxo? Amor? Descanso?

Muitos são os questionamentos propostos a nós, espectadores. É como num jogo de quebra-cabeças que para encontrar as peças que cabem nos espaços, é preciso procurar com atenção para formar um sentido, uma imagem conhecida nossa e das personagens. São muitas peças e cada uma delas um questionamento, outras imagens incompletas que nos levam a outras peças e a outros questionamentos.

Porque os cães atacam? Por defesa? Por medo? Para receberem a recompensa? Pelos três motivos anteriores? Quem pode te salvar de um ataque de cães? Você próprio? Seus pais? Seu filho? Ninguém?

A partir dessas questões vão surgindo outras que respondem essas e assim as peças do quebra-cabeças vão se formando, mas também cuidado, podem aparecer peças aparentemente erradas que não se encaixam, que se bifurcam no jogo trazendo outros questionamentos. O que fazer quando os desejos estão sufocados e aniquilados pela dureza do dia-a-dia e pela carência de afeto?

O que fazer para proteger uma mãe que já sofreu tanto?

O que fazer para resgatar um amor do passado que se foi?

Como lidar com o luto? O que fazer para sair de um trabalho que esgota sua vida e adoece sua alma e se tornar rica? O que é preciso fazer para que isso possa se tornar realidade?

Será possível matar seu pai alcoólatra para proteger sua mãe?

Quem são os assassinos? É possível matar qualquer pessoa que faça sua mãe sofrer?

Um homem rude é mesmo um sensível incompreendido?

O filme responde cada uma dessas questões nas ações fílmicas, mas, volta a nos questionar, agora num jogo de esconde-esconde e novamente esconde encontra.

Com calma, sem pressa, em cada olhar sutil das personagens, nas portas entreabertas, no corpo que exala fedor para isolar-se de outros, pelo casamento às pressas, pela música de Strauss que não sai e pela mesma música que implode dentro do ser, pela frieza dos afetos, pelo gosto amargo do rum que abafa a dor, pela sutileza da maldade na expertise, pela vulnerabilidade do coelho assustado, pela força e beleza do cavalo. Enfim, pela vida que corre e que aos poucos vai sendo capaz de satisfazer os desejos de cada personagem, de cada ser, de cada pessoa. Alguns desejos vão se tornando realidade, seria um momento feliz, porém para que esse possa existir é necessário sacrificar aquele que por um breve momento se descuidou, acreditou, amoleceu, se apaixonou, dormiu em seu posto de guarda - soldado - pois em sua essência, acreditou que aquele cão, logo após alguns rápidos e significativos afagos, não seria capaz de atacá-lo. A dura pedra quebrada pela água certeira que a fura pela astúcia sem compaixão e com extrema persistência.

Vale muito a pena assistir "Ataque dos cães” e nos deixar embrear nas questões, nas soluções de cada personagem. Cada um de nós pode montar o seu próprio quebra-cabeças e propor novas construções em análises. Bom filme!!!
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Direção: Jane Campion
Plataforma: Netflix