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Tons em “O maestro e o Mar”: Explorando clichês e profundidades – resenha da série: O Maestro e o Mar (alerta de spoiler)

Tons em “O maestro e o Mar”: Explorando clichês e profundidades – resenha da série: O Maestro e o Mar (alerta de spoiler)

Por Giuliana Sagulo - 

Comecei a assistir a série grega O Maestro e o Mar, de 2022, porém, na metade do segundo episódio perdi totalmente o interesse.  Parecia ser uma série clichê daquelas que retrata um homem bonito apaixonado por uma garota ainda mais bonita, enfrentando obstáculos para viver esse amor à luz do pôr-do-sol na Grécia.

E mais: um homem atraente e mais velho, apaixonado por uma garota linda com toda espontaneidade e frescor da juventude. Mais clichê impossível!

A série se resume a isso?

Sim. Não. Talvez. 

Mais alguns amores impedidos, desencontros, belas paisagens, fotografia, luzes e.… música.

O próprio nome já sugere a importância desse recurso na trama, e foi isso que me motivou a uma segunda chance, afinal, não é só um roteiro que me inspira, mas aquilo que pode se extrair dele. 

E foi uma boa escolha.  

Já nos primeiros episódios algumas coisas se tornaram evidentes, como a relevância de personagens para além do casal-deuses-gregos protagonistas, Orestis e Klelia. 

Em cada um dos 9 episódios há um narrador-personagem que compartilha sua própria história, suas dores, seus questionamentos, fazendo de nós, expectadores, ouvintes (analistas?).

Esperei ansiosa ouvir Haris e Maria. 

Haris, avó de Klelia, deixa clara a identificação com a neta, e aos poucos percebemos que isso vai além do amor pela música.  Ela se revela uma mulher que destoa dos demais habitantes locais. Uma mulher madura, elegante, bela, atenta aos detalhes ao seu redor e que no passado fez parte da cena musical da Ilha de Paxos.   

Maria é comovente. Uma mulher que parece ter a vida sufocada dentro de si mesma, mas que se ilumina com a possibilidade de ajudar Orestis na organização do festival da cidade. Poderia ter a caracterização típica de uma senhora fofoqueira da pequena comunidade. No entanto, do começo ao fim, a atriz interpreta lindamente uma personagem que expressa em seus olhos tristeza e entusiasmo, dor e contentamento, amor e ódio, além do desejo de encontrar momentos de felicidade fora da realidade caótica de um casamento violento. Até Charalambos, o marido que não aceita o filho homossexual também tem sua história contada. Quase senti pena ao compreender de onde vem tanta dureza. (Quase?  Acho que senti mesmo. Havia sofrimento, muito sofrimento nele.)  Ele é incrivelmente odioso. Envolvido em crimes com o não menos detestável, porém mais requintado, prefeito da cidade, Fanis. Um homem de aparências que “impõe” à sua família um padrão “Doriana” de apresentação. Sua esposa, Sofia, está dopada por remédios que evitam o contato com a realidade de suas vidas tão miseráveis quanto solitárias, ainda que ao final do último episódio nos dê o alívio de parecer despertar do transe. 

Aliás, creio que o que a série, entre outras possibilidades, se propõe a discutir seja justamente o mundo instagramável e o quanto fingir para atender a supostas expectativas sociais é cruel, tedioso e doentio. É preciso, de fato, nos desprendermos de nosso narcisismo para podermos crer que ser insignificante pode ser libertador. 

O curioso é notar que nos momentos de “devaneios”, onde são colocadas as outras possíveis formas de se viver, onde as pessoas apenas se mostram sorrindo espontaneamente, se dão com coisas muito simples, como poderem assumir seus amores. Pessoas lindas, lugares maravilhosos e rostos sérios, cheios de mágoas, segredos, ressentimentos.  Adoentados da mente e do corpo. 

Ainda durante os 8 primeiros episódios, ao final de cada um, anuncia-se um crime. Aos poucos descobre-se a vítima e ansiamos pelo momento de descobrir quem, entre tantas pessoas que a odiavam, a matou e por quê. 

As nuances de cada personagem são percebidas e sentidas pelo expectador de forma mais intensa de acordo com a música escolhida para cada momento. 

Claro que podemos pensar nas artes de forma geral como uma ferramenta para sublimar as dores que cada um carrega. 

No entanto, num filme ou série, a escolha das faixas não é aleatória, sobretudo numa que se propõe a discutir justamente as emoções que as músicas evocam. Sentir e pensar através do som. 

Seja com Queen nos luaus dos jovens garotos que não podem flertar, com cantores gregos que desconhecemos, com A-Ha no walkmam do jovem Charalambos ou com clássicos eruditos.  São as músicas que contribuem para atmosfera, humor e emoção entre os atores e seu público. Por que não pensar que ouvidos atentos às “músicas” que nossos pacientes “cantam” nos permitem uma conexão emocional profunda com eles? 

Em cena ou na musicalidade da fala de um analisando, é preciso perceber o tom, o ritmo, as mudanças de enredo.

Se pensarmos nos atendimentos on-line também uma experiência audiovisual, a música ou a musicalidade das falas podem conter elementos ricos para o processo analítico. 

Talvez como numa ópera, a série pode ter se desenvolvido com um início mais lento e reflexivo, com partes declamadas. Num segundo momento, a orquestra acompanha essas vozes ganhando intensidade e velocidade. Depois, alguns personagens cantam juntos, conferindo ainda mais intensidade, ritmo e dramaticidade. 

Enfim, o nono e último episódio é este momento. O festival se realiza enquanto cenas de passado e futuro se alternam. Essas cenas dramáticas, do ponto de vista do volume das músicas, das idas e vindas no tempo, na constatação de que, no fim das contas, tudo poderá se repetir. As pessoas talvez sigam amarradas nas imagens de si mesmas, nos interesses escusos ou nas dores do passado.... 

Retomando a questão dos clichês.... Talvez seja impossível escapar deles na trajetória de qualquer indivíduo. A repetição é o que confere a eles o status de clichê, tanto os que inadvertidamente reproduzimos quanto aqueles que nos são legados de gerações passadas. 

Isso que nos parece tão familiar nos convida a contemplar não apenas o aspecto ridículo de algumas repetições, como os preconceitos, mas também a refletir sobre (in)verdades, (des)amores, (im)possibilidades e (des)encontros. 

Surpreendentemente, alguns clichês podem conter beleza própria. Ao mergulhar em suas possíveis complexidades podemos descobrir, que apesar da familiaridade, permanecem autenticamente nossos.

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Direção: Christoforos Papakaliatis
Plataforma: Netflix