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Do aparato psíquico em Freud à teoria do pensar

Do aparato psíquico em Freud à teoria do pensar

Por Anderson Cecilio - 

A evolução da psicanálise desde as formulações de Freud sobre o aparelho psíquico até a teoria do pensar de Wilfred Bion, passando pelas importantes contribuições de Melanie Klein, revela uma rica trajetória de desenvolvimento na compreensão da mente e suas funções. Freud lançou as bases com seu modelo estrutural da mente, Klein ampliou nossa visão ao explorar as relações primitivas e os mecanismos de defesa, e Bion nos ofereceu uma visão sobre o pensar como um processo que surge da necessidade de transformar experiências emocionais brutas.

Este trabalho se propõe a explorar a interconexão entre esses três autores, elucidando como suas teorias oferecem uma compreensão mais ampla sobre o funcionamento psíquico, a função do pensar e o papel das experiências emocionais primitivas.

1. O Aparelho Psíquico em Freud
Sigmund Freud introduziu a noção de um aparelho psíquico dividido em três instâncias: o Id, o Ego e o Superego, que interagem em constante conflito e cooperação para moldar o comportamento humano. Esta estrutura foi sua resposta teórica para entender o funcionamento psíquico e a forma como os desejos inconscientes se manifestam e são regulados.

1.1 O Id, o Ego e o Superego
Id: É a instância psíquica mais primitiva e irracional, regida pelo princípio do prazer. Abriga os impulsos inconscientes, buscando gratificação imediata sem considerar as consequências.

Ego: Surge como um mediador, funcionando de acordo com o princípio da realidade. Sua tarefa é equilibrar as demandas do Id com as exigências do mundo externo, buscando uma adaptação que reduza o desconforto e proporcione soluções viáveis.

Superego: Representa a internalização das normas e valores morais, atuando como uma força de controle sobre o Ego. É o “juiz interno” que impõe padrões éticos e tenta frear os impulsos do Id.

1.2 A Função do Pensar para Freud
Freud vê o pensamento como uma função do Ego, um mecanismo utilizado para mediar os desejos do Id e as demandas da realidade. O pensamento é um processo secundário que ajuda o Ego a planejar e adiar a gratificação imediata, operando como uma ferramenta para controlar e canalizar os impulsos. A função do pensar é, assim, uma atividade racional, embora seja influenciada pelos desejos inconscientes.

Reflexão
Para Freud, o pensamento consciente é uma função instrumental, sendo frequentemente desafiado pelos impulsos inconscientes. O conflito entre o que se deseja e o que é permitido pelo Superego e pelo mundo externo define grande parte do processo de pensar. Distúrbios no pensamento, como na neurose, surgem quando esse equilíbrio é comprometido.

2. As Contribuições de Melanie Klein: A Importância das Relações Primitivas e da Identificação Projetiva
Melanie Klein, trabalhando a partir das ideias de Freud, trouxe uma nova perspectiva ao focar nas primeiras relações do bebê com seus objetos internos e externos, especialmente na relação com a mãe. Klein enfatizou que a mente infantil é moldada por fantasias inconscientes e que o pensar é profundamente influenciado pelas dinâmicas de projeção e introjeção.

2.1 Fantasias Inconscientes e Objetos Internos
Klein postulou que, desde o nascimento, o bebê vive em um mundo de fantasias inconscientes, onde os objetos (partes do corpo da mãe, por exemplo) são idealizados ou odiados. O desenvolvimento psíquico é moldado pela forma como o bebê lida com essas fantasias e suas ansiedades primárias, como a ansiedade de ser destruído (ansiedade persecutória).

A identificação projetiva é um conceito central na obra de Klein, onde o bebê projeta partes de si, especialmente as partes indesejadas, no objeto (geralmente a mãe). Esse processo primitivo de comunicação emocional serve para aliviar a angústia, mas também é fundamental para o desenvolvimento posterior da capacidade de pensar.

2.2 Mecanismos de Defesa e a Posição Esquizoparanóide
Klein propôs que o bebê inicialmente vive na chamada posição esquizoparanóide, onde o mundo é dividido em “bom” e “mau”. Esse tipo de pensamento dicotômico é uma defesa contra a ansiedade e o caos emocional que o bebê enfrenta. À medida que o desenvolvimento avança, o bebê gradualmente se move para a posição depressiva, onde pode integrar aspectos bons e maus em um único objeto.

A capacidade de tolerar essas ansiedades e integrar os objetos parciais é essencial para o desenvolvimento do pensar. A partir dessa integração, surge uma forma mais madura de pensamento, que consegue lidar com ambivalências e complexidades.

Reflexão
Klein nos mostra que o pensar se enraíza nas relações primitivas e nas fantasias inconscientes. O pensamento não é apenas uma função racional, mas um processo carregado de afetos, influenciado pelas maneiras como projetamos e introjetamos partes de nós mesmos em nossos objetos. O sucesso desse processo é essencial para o desenvolvimento da função de pensar, enquanto falhas resultam em distúrbios graves como a psicose.

3. Wilfred Bion e a Teoria do Pensar: Transformando Experiências Emocionais

Wilfred Bion, influenciado por Klein, deu continuidade ao desenvolvimento da teoria psicanalítica ao focar na função do pensar e nas formas pelas quais a mente humana lida com experiências emocionais primitivas. Ele se preocupou em entender como as experiências emocionais, muitas vezes intoleráveis, poderiam ser transformadas em pensamentos pensáveis.

3.1 A Função Continente-Contido
Um dos conceitos centrais de Bion é a função continente-contido, que descreve como o pensar se desenvolve a partir da interação entre o bebê e o cuidador (geralmente a mãe). O bebê Projeta seus estados emocionais intoleráveis (contido) no cuidador, que age como um continente, recebendo essas projeções e transformando-as em algo que pode ser tolerado e pensado.

Se a mãe consegue realizar essa função de contenção adequadamente, o bebê internaliza essa capacidade de pensar sobre suas emoções e a usa para processar experiências emocionais futuras. Caso contrário, o bebê permanece incapaz de transformar seus estados emocionais, resultando em confusão psíquica.

3.2 Elementos Alfa e Beta
Bion introduz os conceitos de elementos alfa e elementos beta para descrever o processamento mental das experiências. Os elementos beta são experiências emocionais brutas que ainda não foram digeridas ou pensadas. Quando transformados pela função alfa, esses elementos tornam-se elementos alfa, que são as bases do pensamento consciente.

O pensar, então, é visto como um processo contínuo de transformação das experiências emocionais brutas em algo simbolizável. Sem esse processo, o sujeito não consegue desenvolver um pensamento coerente, e a mente é inundada por fragmentos emocionais desconexos.

3.3 Transformação de 'O' em 'K'
Outro conceito importante em Bion é a transformação de 'O' (a experiência emocional crua e incompreensível) em 'K' (conhecimento). Para Bion, a mente precisa ser capaz de tolerar 'O' e, através da função alfa, transformá-lo em algo que possa ser conhecido e pensado.

No entanto, muitos indivíduos, incapazes de tolerar a intensidade de 'O', recorrem a mecanismos defensivos, como a negação ou o dogmatismo ('K em -K'), bloqueando o processo de pensamento. Bion sugere que a verdadeira capacidade de pensar envolve a disposição para suportar a incerteza e a frustração que vêm com o contato com o real.


Reflexão
Bion aprofunda as ideias de Klein sobre a identificação projetiva ao descrever o pensar como um processo de transformação emocional. Ele nos mostra que o pensar não é apenas uma função cognitiva, mas um processo dinâmico que envolve a capacidade de processar e transformar estados emocionais intensos. Quando esse processo falha, o sujeito se vê inundado por emoções que não podem ser pensadas, resultando em desorganização psíquica.

4. Comparação entre Freud, Klein e Bion

4.1 Função do Pensar
Freud vê o pensar como uma função do Ego para mediar os desejos do Id e as exigências da realidade. Klein, por outro lado, enfatiza que o pensar está profundamente enraizado nas primeiras relações objetais e fantasias inconscientes. Bion, desenvolvendo as ideias de Klein, foca na função do pensar como um processo de transformação das experiências emocionais.

4.2 O Inconsciente
Para Freud, o inconsciente é um reservatório de desejos reprimidos, enquanto Klein vê o inconsciente como o lugar onde as fantasias primárias moldam a mente. Bion, por sua vez, amplia essa visão ao sugerir que o inconsciente também é o lugar onde as experiências emocionais aguardam transformação para se tornarem pensáveis.

4.3 Exemplos Clínicos
Freud, em seus exemplos clínicos, destaca o papel do conflito entre o inconsciente e o consciente, como visto em casos de neurose. Klein, em seus trabalhos com crianças, mostra como a identificação projetiva e a fantasia inconsciente moldam a mente infantil. Bion, por sua vez, foca em exemplos onde a capacidade de pensar está comprometida, como em pacientes psicóticos, que não conseguem transformar suas emoções em pensamentos simbolizáveis, permanecendo em um estado de confusão psíquica.

5. Integração Teórica: Do Aparelho Psíquico à Teoria do Pensar
Ao integrar as contribuições de Freud, Klein e Bion, podemos ver uma evolução no pensamento psicanalítico sobre a função psíquica e a capacidade de pensar. Freud nos oferece uma estrutura básica do aparelho psíquico que regula os desejos e a realidade. Klein expande essa visão ao incluir as relações primitivas e os processos inconscientes que influenciam o desenvolvimento psíquico desde os primeiros meses de vida. Bion, por sua vez, avança ao focar na transformação emocional como o cerne do processo de pensamento.

5.1 O Aparelho Psíquico e o Pensamento como Transformação
Freud descreve o aparelho psíquico como uma estrutura em constante conflito, onde o Ego busca mediar as exigências do Id, do Superego e da realidade externa. Para Freud, o pensamento serve como um mecanismo de adaptação, permitindo ao Ego planejar e controlar os impulsos instintivos. No entanto, Klein revela que a capacidade de pensar não depende apenas da lógica consciente, mas também de como o indivíduo lida com suas fantasias inconscientes e ansiedades primitivas.

Bion, por sua vez, propõe que o pensamento não surge automaticamente; ele é resultado de um processo de contenção emocional. O bebê, incapaz de pensar por si só, projeta suas ansiedades na mãe, que, ao transformá-las, ensina o bebê a pensar. Esse processo é a base para o desenvolvimento da mente pensante, que depende da capacidade de transformar experiências emocionais brutas em algo que possa ser simbolizado.

5.2 A Falha na Transformação do Pensar
Quando o processo de transformação falha, o resultado é uma mente incapaz de pensar de forma eficaz. Para Freud, isso pode se manifestar em sintomas neuróticos, onde o conflito entre os desejos inconscientes e as exigências conscientes leva a uma paralisia psíquica. Para Klein, a falha na contenção e na integração dos objetos bons e maus resulta em estados mentais psicóticos, onde o pensamento é fragmentado e cheio de ansiedade persecutória.

Para Bion, a incapacidade de transformar experiências emocionais em pensamentos resulta na prevalência de elementos beta, que são impulsos sensoriais brutos que não podem ser pensados. O indivíduo que falha em transformar essas experiências vive em um estado de caos psíquico, incapaz de organizar suas emoções ou produzir pensamentos coerentes.


6. Conclusão
O desenvolvimento do pensamento na psicanálise, desde Freud até Bion, representa uma jornada em direção à compreensão das complexidades da mente humana. Freud nos deu a base para entender o aparelho psíquico e a função do pensar como uma ferramenta de mediação entre os impulsos e a realidade. Melanie Klein ampliou nossa visão ao explorar as profundezas das fantasias inconscientes e como elas moldam a capacidade de pensar. Bion, finalmente, revelou que o pensar não é um dado; é algo que deve ser conquistado e mantido através da capacidade de suportar e transformar experiências emocionais.

A teoria do pensar de Bion mostra que, sem a transformação adequada, a mente fica à mercê de emoções brutas, incapaz de gerar pensamentos significativos. Assim, o processo de pensar é, em última instância, um processo de sobrevivência emocional, onde a mente busca constantemente transformar o incompreensível em algo que possa ser conhecido e simbolizado.

Ao integrar essas teorias, podemos entender melhor os diferentes níveis de funcionamento psíquico e o papel central que o pensar desempenha na saúde mental. Freud, Klein e Bion nos oferecem perspectivas complementares sobre como o aparelho psíquico e o processo de pensar são formados, mantidos e, às vezes, desmoronam quando o processo de contenção emocional é comprometido.

Este trabalho, portanto, mostra a importância de ver o pensar não apenas como uma função cognitiva, mas como um processo emocional que depende da nossa capacidade de transformar experiências intensas e muitas vezes dolorosas em algo que pode ser tolerado e compreendido.