Por Lúcia Nogueira Leiria -
Os sonhos, ao longo da história da humanidade, receberam olhares distintos. Já foram considerados formas de comunicação com seres sobre-humanos, sinalizações de deuses ou demônios, modos de predizer o futuro etc. Aristóteles os tratava pelo viés psicológico; em Freud, temos a abordagem científica para os sonhos, em que estes são mais uma via de acesso ao inconsciente, sendo, portanto, valiosos para ajudar na compreensão nosso funcionamento psíquico.
A obra A Interpretação dos Sonhos concorre com o Modelo Topológico, ou 1ª Tópica, que buscava estabelecer a topografia do aparelho psíquico. Segundo esse modelo, a psique está dividida em três sistemas: o inconsciente, nível mais profundo; o pré-consciente, entre inconsciente e consciente; e o consciente, nível da consciência. O inconsciente, por sua vez, é o local (sistema) onde se depositam os conteúdos recalcados, relacionados àqueles desejos que o sujeito, por não dar conta dos afetos envolvidos, acaba expulsando da consciência, enviando-os para baixo do nível do pré-consciente, o inconsciente.
O acesso ao inconsciente, segundo Freud, não é algo que possa ser deliberado; a única forma de se ter acesso a ele é por meio de sua revelação ou manifestação na consciência. Os conteúdos inconscientes, no entanto, após conseguirem cruzar a barreira do pré-consciente, não se revelam claramente, aparecem travestidos, podendo se expressar como atos-falhos, chistes, sintomas, sonhos, transferência. O livro A Interpretação do Sonhos sistematiza as diferentes formas de manifestação do inconsciente por meio dos sonhos.
No Caso Dora, tem-se uma clara definição de sonho, da qual se pode inferir a relevância do mundo onírico para a clínica. Segundo Freud, “o sonho representa um dos caminhos pelos quais pode atingir a consciência o material psíquico que, em virtude da aversão que seu tema provoca, foi bloqueado da consciência, reprimido, e assim tornado patogênico.” (p.184). Chama a atenção a palavra ‘patogênico’, a qual possivelmente, à época de Freud, tenha contribuído para solidificar o valor do sonho para a clínica psíquica. Atualmente não se pode pensar no sonho como algo patológico, dado que não se curam afetos ou desejos, mas continua sendo um importante veículo para levar até a sessão elementos que precisam ser tratados com atenção clínica; vale salientar aqui que são os conteúdos latentes, e não os manifestos no sonho, que realmente interessam para o tratamento clínico. Além disso, considerando que o sonho é sintoma e pode ser interpretado pelo mesmo método dos sintomas, segundo Freud, tem-se reforçada a importância do material onírico no tratamento psicanalítico.
O sonho é a manifestação de um desejo, afirma Freud. Trata-se, entretanto, de um desejo recalcado, tão forte como o manter relações sexuais com pai ou mãe, por exemplo, impossível de ser manejado pelo sujeito e consequentemente jogado para o inconsciente. Esse desejo, por sua vez, um dia rompe a censura do pré-consciente e retorna em forma sonho, mas com outra roupagem. Devido a isso, os sonhos nunca são claros. São conteúdos inconscientes, ou latentes, que ao irromperem a consciência, tornando-se manifestos, assumem estruturas particulares e passam por vários processos: a condensação, o deslocamento, a representação e a elaboração secundária.
A condensação é um processo em que muitas informações se agregam em torno de um ponto nodal, que pode ser uma ideia ou imagem oriundas da informação mais saliente do dia. Nesse caso, os elementos se fundem, ou se condensam, ocorrendo uma espécie de abreviação do material latente. No deslocamento, ao contrário, um ponto relevante do sonho passa a ser menos proeminente e aspectos secundários aparecem mais detalhadamente, de modo que o conteúdo manifesto no sonho aparece de forma diferente do recalcado que lhe deu origem. A representação, ou simbolização, é a etapa em que a condensação e o deslocamento se organizam – elaboração primária – por meio de imagens que podem ser visualizadas no sonho.
A elaboração secundária, por sua vez, corresponde a um segundo momento dessa elaboração onírica. Tal como a linguagem verbal, em que
temos o plano formal e o semântico, os sonhos também passam por duas elaborações – a primária e a secundária. Primeiro, o conteúdo latente se organiza sintaticamente no pré-consciente de modo a tornar-se formalmente coerente; consegue driblar a censura, mas é incompreensível semanticamente, ocultando o recalcado. Num segundo momento, na elaboração secundária, o trabalho do sonho estabelece relações entre as partes dessa estrutura formal, preenchendo-a com a coerência semântica de modo a dar sentido à narrativa,
tornando-a inteligível.
Os processos são disfarces, os afetos, porém, são verdadeiros. Freud nos ensina que, no sonho, tudo é transformado, menos os afetos. Segundo ele, “A análise nos mostra que o material de representações passou por deslocamentos e substituições, ao passo que os afetos permanecem inalterados.” Com isso, tem-se nos afetos que acompanham o sonho uma questão de extrema importância para o tratamento psicanalítico, uma vez que é a única informação manifesta, como inibição ou inversão, que se mantém inalterada em sua jornada desde o inconsciente até o consciente.
Por fim, para reafirmar o valor do sonho como ferramenta para o entendimento do aparelho psíquico, vale trazer novamente palavras de Freud, expressas no Caso Dora (p.184), “O sonho é, resumidamente, um dos desvios para contornar a repressão, um dos principais meios da chamada forma indireta de representação na psique.”
Referências
FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. L&PM Editores, 2019.
______. Obras completas volume 6: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (O caso Dora) e outros textos (1901-1905). Tradução Paulo Cézar de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2016.