Por Katia Peixoto dos Santos -
Aconteceu no mês de agosto de 2024 na EPP (Escola Paulista de Psicanálise), o ciclo de estudos: "Grandes Nomes do Cinema - Sobre Ser Humano”, coordenado pela psicanalista Lilian Afonso do Instituto Ékatus. Ao analisarmos três filmes de realizadores consagrados do cinema mundial: Almodóvar em "A Voz Humana”; Guillermo del Toro em "A Forma da Água" e Stephen King em "Partes de Nós”, fomos convidados a lançar um olhar mais observador e questionador às emoções dos personagens. Eles, como nós, possuem uma vida, sendo que a deles é construída pelos roteiristas para possuírem recalques, traumas, desejos, dores e decepções que são avivadas nas cenas pelos sentimentos de amor, ódio, medo, coragem, tristeza, alegria e tantos outros que perpassam pelas suas trajetórias, uma verdadeira saga fictícia.
Por esse caminho proposto, pudemos observar os personagens e refletir a respeito das modulações emocionais experimentadas por eles durante as tramas fílmicas, evidenciando suas fragilidades, vulnerabilidades e impermeabilidades. Tais experiências emocionais se tornam modelos para pensarmos a práxis psicanalítica, no manejo clínico perpassando pela supervisão e análise pessoal. Um exercício interessante recomendado principalmente aos amantes do cinema e da psicanálise.
O filme escolhido do ciclo para pensarmos aqui, ”A Voz Humana” 2020 de Almodóvar, é um curta-metragem de trinta minutos de duração, livremente adaptado do texto original homônimo de Jean Cocteau, poeta francês de quem o diretor é fã. Filmado entre 16 e 27 de julho de 2020, durante a pandemia de Covid 19, esse monólogo foi dirigido e interpretado em inglês, uma novidade para o diretor. Tilda Swinton, como protagonista, deu ao dilema existencial da personagem de Almodóvar, uma tonalidade fria e racional, com alguns instantes de desequilíbrios contidos, portanto, menos melodramática, menos caliente e menos cômica que a maioria dos personagens do diretor. Com uma temática mais voltada ao universo feminino e queer, os personagens de Almodóvar costumam ser mulheres, gays, travestis e transexuais que transitam pelas histórias desafiando seus desejos, suas fraquezas, seus amores, suas tristezas e elaborando suas doces vinganças.
Olhar para um filme de Almodóvar por um viés psicanalítico, nos proporciona dois movimentos fantásticos que se completam, um para dentro de nós e outro para o íntimo dos personagens em seus universos dramáticos e inquietantes. Ao vivenciarmos as experiências emocionais pelas quais os
personagens atravessam durante o percurso fílmico, somos movidos a pensar em questões delicadas e profundas que refletem nossa própria humanidade, pela catarse aristotélica ou, especialmente neste filme, pelo distanciamento brechtiano.
Em “A voz Humana”, a mulher e seu amante são inomináveis, portanto se aproximam mais de uma realização em que o ato cênico é mais importante do que a profundidade do personagem. A mulher sofre há três dias por não ter noticias de seu companheiro, ele parece estar tão desinteressado que não consegue voltar pra casa nem para buscar suas roupas, abandonando também o seu cachorro. Um telefonema é o único contato entre eles, porém só é possível ouvir a voz da mulher. Almodóvar subverte o lugar onde essa mulher se encontra, ele a coloca dentro de um cenário, set cinematográfico, favorecendo uma quebra dramática da ficção para a realidade critica.
Nós, espectadores, estamos vendo um filme e sabemos que estamos num filme. A metalinguagem traz essa atmosfera dúbia entre ficção e realidade. O cenário nos mostra por detrás das câmeras, comunicando a nós, espectadores, que aquilo tudo se trata de uma ficção. Quem sofre neste cenário fictício? A atriz ou a mulher que a atriz interpreta? Há no roteiro a intencionalidade de dinamizar um jogo entre realidade x ficção, fantasia x realidade, imaginação x desejo, documentário x ficção, essas posições se alternam durante toda a trama fílmica.
O incrível cenário do filme foi assinado pelo diretor de arte Antxón Gómez, que acompanha o diretor há algum tempo. Ele foi elaborado com cores primárias e secundárias impressas em quadros, tapetes e obras de arte, tudo para simbolizar os estados mentais referenciais da personagem, esse mundo organizado, culto, moderno, luxuoso e que remete à uma "casa de bonecas”, perfeita, onde subentende-se que o casal viveu seus instantes de amor. Esse mesmo cenário que representa a ordem e a beleza é o mesmo que enclausura o amor, a mulher está numa espécie de "prisão luxuosa domiciliar”. O espaço cênico a aprisiona, esse set cinematográfico não esconde sua artificialidade cenográfica (à la Federico Fellini). Para nós espectadores fica claro que ela é uma atriz interpretando um papel: uma
mulher que fora abandonada pelo seu amante.
O cenário e a atuação da mulher são componentes metafóricos dos estados mentais dessa mulher, que oscila entre o que acontece dentro dela, o que é projetado e o que ela imagina. Esse processo de conflito entre o fora e o dentro caracteriza estados transitórios ou até permanentes de alucinação.
Alucinar não é uma exclusividade de indivíduos sob efeitos de drogas e/ou transtornos mentais, estados alucinatórios podem acontecer no dia-a-dia das pessoas em forma de conta-gotas ou em momentos específicos, como em situações de estresse, paixões arrebatadoras ou desejos incontroláveis. Portanto, podemos pensar em até que ponto essa mulher alucina esse amor, acreditando ser amada por seu companheiro ou demostrando ao falar com o amante no telefone que consegue lidar facilmente com esse abandono.
Existe pontos cruciais no cenário e como se dá a ocupação da mulher nesse espaço cênico, como na cena inicial em que ela aparece no set com um vestido vermelho de armação, um exuberante Balanciaga, impecável em vermelho sangue vivo. Logo, num corte, a câmera fecha para um close-up da mulher, um olhar apreensivo e triste se destaca. Sai o vestido vermelho entra o vestido preto, o luto anuncia o drama do filme, a tragédia anunciada. Como duas mulheres que brigam e habitam dentro da personagem; a de vermelho e a de preto representando essa ambiguidade do amor. A vontade de ter somente prazeres, o principio do prazer, como defendeu Freud, a força que nega e evita a dor e o sofrimento. Outro vestido vermelho vai aparecer e a mulher que veste vermelho, está disposta a sublimar, fingir ou até mesmo fugir de sua dor pelos artifícios disponíveis naquele universo luxuoso e fantástico em que aparenta viver. É a luta interna entre o luto, a morte, o fim e o prazer do recomeço da vida. As pulsões de vida e de morte, a magia de ser levado de um momento glorioso a um outro de perda, num ciclo infinito.
Logo no início do filme há uma cena em que a mulher sai para comprar um machadinho, um objeto simbólico muito comum em filmes de terror e suspense que geralmente são usado para o assassino psicopata cometer um crime. Para a mulher, o machadinho é para matar no entanto, de forma mais simbólica: Esquartejar o paletó exposto na cama. Quem morre dentro de mim quando o amor acaba, quem deixo ir embora? Eu? O outro? E o pedaço de mim que era do outro? E o pedaço do outro que era meu, ou pensava ser meu? Como descolar-se do outro? O que sobra de mim depois que o outro se vai? Eu projetei o meu eu idealizado no outro? Era aquilo de que necessitava? O que vou fazer nas horas em que estaria com o outro? Agora sou indivíduo, comigo mesma atuo minha própria solidão e invento músicas para dançar a incerteza e as transformações do viver.
No cenário do banheiro, podemos ver um perfume Chanel nº5 dividindo espaço com diazepam, maquiagens e remédios se misturam na ambiguidade entre o fundo do poço e o céu das futilidades inebriantes, como a dos perfumes franceses e maquiagens caras. Também se torna possível vivenciarmos a vontade dessa mulher de seguir em frente e deixar as partes ultrapassadas pra trás, como o amor que agora não é correspondido, o amor de um ser que abandona sua amada e seu próprio cão. Quem é esse ser humano que abandona seu cachorro? Essa metáfora da fidelidade do cão é incrível, durante as cenas o cão fareja incansavelmente o cheiro de seu dono e se conforta com o mesmo terno do dono que será esquartejado e que fará companhia à mulher em sua petite mort. O desalento do cão, o desalento da mulher. A mulher e o cão na mesma situação de abandono.
Aquele homem que faz essa mulher em frangalhos, surge apenas como um ser do outro lado da linha telefônica, sem voz, sem imagem própria, apenas como uma possibilidade. Esse homem realmente existe? Ele é o desejo dessa mulher? O telefone toca e a transformação se valida, o íntimo dela se expande quando ao atender a chamada e ouvir a voz do ex amante, ela abre a caixinha do headphones Apple e de dentro sai um AirPods. A dignidade se impõe pela forma, não somente aqui mas no vestido de grife, no perfume Chanel ou na decoração impecável do cenário, é a pulsão de vida se contrapondo aos remédios, vestido preto, cama, tristeza e morte.
Mesmo com muita dor ela não desmorona, ela possui elementos de fora que a ajudam, a sua figura esguia e bela, o seu vestido vermelho… e nesse momento o conteúdo das coisas se tornam insignificantes, pois exigem outras significações. Ela finge, mente, escamoteia e vai aos poucos se colocando, transforma em atitude uma pequena parte da dor, que certamente durará ainda por algum tempo. Ela consegue a purificação pela vingança e fecha com chave de fogo a situação em um grande finale. A Fênix começa a
renascer.
O vestido vermelho Balanciaga, o perfume Chanel, os headphones I Phone e o quadro de Artemísia Gentileschi, "Vênus e Cupido”, a Vênus sendo abanada por Cupido enquanto dorme tranquila banhada de amor e paixão, esses objetos do cenário ressignificam sua existência no mundo de fora. A deusa do amor, da beleza, do sexo, da fertilidade é poderosa, essa é a mulher representada por Almodóvar, independente, bonita, bem sucedida com imenso desejo de viver um amor forte e ardente, mas também aquela pós-moderna, com fama, dinheiro, beleza e independência. Não é possível suprir o desejo ardente de amor? Mas o amor já está nela, ela é o amor, a deusa, a Vênus em sua plenitude, em seu corpo e em sua alma.
Na adaptação de Almodóvar, a mulher dá a volta por cima, ao contrário da mulher do curta homônimo interpretado pela atriz Ingrid Bergman em 1966. No curta interpretado por Ingrid Bergman, a mulher ao telefone com o amante está jogada na cama repetindo; "eu te amo, eu te amo, eu te amo", submissa e afundada na amargura, fadada a morrer de amor. No curta de Almodóvar, a mulher sabe que naquele lugar seus desejos foram recalcados, mas também sabe que é emancipada, erotizada, e por esse motivo consegue e pode desligar o telefone primeiro, queimar o cenário que a aprisionava e continuar dona da sua vida na companhia, do agora, seu cão. Fora daquele cenário há outras vidas, outros amores e provavelmente outros desejos.
___________
Direção: Pedro Almodóvar
Plataforma: MUBI