Por Adriana Silveira -
O Caso Dora, publicado em 1905, é um dos casos clínicos de Freud mais conhecidos e estudados. O período do tratamento da paciente, a quem é dado o pseudônimo de Dora, deu-se alguns anos antes da publicação do texto, coincidindo com os estudos acerca dos trabalhos do sonho publicados na obra A Interpretação dos Sonhos (1900).
Nesse período, Freud, já afastado da técnica da hipnose e do método catártico para tratamento da histeria, inicia a construção de seu método analítico, que terá como princípio a associação livre, por meio da fala espontânea da paciente, na expressão livre dos pensamentos que lhe vêm à mente. É importante notar, no entanto, que o desenvolvimento de sua técnica estava aí apenas em seu início - daí podermos perceber, na descrição desse caso clínico, algumas dificuldades quanto à percepção e manejo de elementos importantes, que viriam a ser sistematizados e normalizados como práticas do tratamento analítico mais adiante.
É o relato do conteúdo de dois sonhos de Dora que serve como material de investigação para o analista, com vistas à exploração do conteúdo latente (reprimido). Seguindo suas próprias convicções a respeito do surgimento dos sintomas histéricos, Freud interpreta os elementos simbólicos desses sonhos a partir dos desejos sexuais infantis e inconscientes da paciente, relativos às figuras dos pais e do sr. e sra. K. Aliás, é o pai que dá a Freud o contexto familiar e de adoecimento da filha, o qual, para ele, seria fruto de uma construção fantasiosa de assédio do sr. K em relação a ela.
Esse fato pode ter influenciado uma postura pré-concebida do analista acerca do quadro da paciente e, inclusive, acerca da importância atribuída à veracidade ou não das memórias por ela expressas. Em sua investigação, Freud mostra estar interessado na busca da verdade e revelação dos fatos, supostamente encobertos na fala da adolescente. Nesse sentido, dá especial importância às lacunas de sua memória e aos deslocamentos, sobretudo às manifestações físicas de seus transtornos psíquicos (sintomas físicos de doença e atos sintomáticos).
A análise desse quadro clínico tem um percurso bastante especulativo e de defesa da comprovação dos pressupostos do analista-cientista. Isso pode ser notado, ao longo do texto, pela presença excessiva de sua própria voz na interpretação dos eventos relatados por Dora. Essa interpretação é comunicada a ela como verdade irrefutável, por mais que a paciente tenha recusado algumas das conclusões do analista (como a de que ela seria apaixonada pelo sr. K., por exemplo).
A atitude adotada por Freud resultou em “pontos cegos” no tratamento, sobretudo quanto à transferência e seus desdobramentos. Há a percepção desse mecanismo por parte do analista, que nota a transferência para ele de traços presentes na figura do pai de Dora, numa clara tentativa de substituição. Mas o fato é que ele está tão voltado a convencê-la sobre a verdade de suas próprias interpretações que desvia a atenção dos mecanismos da transferência e, consequentemente, não chega a manejá-la a contento.
Se, como o próprio Freud acaba por defender mais tarde em seus ensaios, a transferência é fator essencial e inevitável dentro do “setting” psicanalítico - na medida em que também permite verificar as resistências da paciente - podemos dizer que esse “ponto cego”, no caso Dora, levou a limitações quanto aos possíveis avanços da paciente. Subestimada e silenciada em suas interpretações, não lhe é possível identificar traços da dinâmica de repetição de seus afetos. Tampouco lhe são dadas condições para reconhecer e perlaborar os mecanismos de suas resistências psíquicas.
No posfácio à publicação do caso, Freud reconhece suas limitações no manejo da transferência, cujos sinais, segundo ele, estavam muito nítidos nos sonhos relatados por Dora. Ele atribui essas limitações ao curto período de duração do tratamento, interrompido pela própria paciente em menos de três meses de seu início.
Mas essa visão é apenas uma faísca de luz dentro do “ponto cego”. A postura investigativa de Freud na prática psicanalítica, estabelecida a partir de seus pressupostos acerca dos trabalhos psíquicos das pacientes, leva-o, nesse caso, a tomar fundamentalmente para si a tarefa da interpretação: é ele, o analista, o principal responsável pelas elaborações e sínteses, e não Dora. Diante dessa postura, não poderia haver espaço para a escuta aberta das associações e da interpretação da paciente.
O que pode explicar, em boa parte, sua desistência precoce do tratamento.