Por Alexandre Renaut -
Em aparência absurdos e desprovidos de sentido, os sonhos se apresentam como uma cadeia de imagens e eventos sem nexo explícito para o olhar leigo. Para Freud, porém, estes fenômenos psíquicos têm um sentido e uma causa, e eles expressam a realização disfarçada de desejos inconscientes que estão em conflito na vida anímica do paciente. Nesta batalha, a representação conflitante é recalcada – mas o desejo segue habitando o inconsciente, buscando constantemente sua realização – e acaba achando no sonho uma forma oportuna e viável para se expressar.
É curioso e fascinante entender porque o sonho é um terreno tão fértil para esse “retorno do inconsciente recalcado”. Primeiramente, na vida onírica, nosso consciente fica literalmente adormecido, afastado do mundo e dos estímulos externos. Este desligamento afeta também nossos mecanismos de defesa e nossa censura, que já não conseguem barrar com tanta eficácia o desejo inconsciente conflitivo. O relaxamento do sono permite então a vazão destes desejos, que se manifestam de forma velada nos sonhos.
Importante ressaltar que o sonho lembrado pela memória do sonhador é o que chamamos de conteúdo manifesto – ele parece confuso e absurdo porque se manifesta através de símbolos que se misturam com restos diurnos – porém, seu sentido oculto pode ser revelado, através da sua associação com um conteúdo latente original e próprio do paciente. É no conteúdo latente que os pensamentos e desejos recalcados habitam – e é através do sonho que estes conseguem driblar a censura, se transformando e se materializando em conteúdo manifesto.
Na psicanálise, o trabalho de elaboração do sonho é o processo pelo qual este conteúdo latente é transformado em conteúdo manifesto. Este processo é guiado por mecanismos que ocorrem simultaneamente e que obedecem a uma lógica própria ao inconsciente – com o objetivo final de escapar da censura.
Segundo Freud, a própria lembrança e reconstituição do sonho já sofre os efeitos da nossa defesa consciente, que buscará reorganizar o sonho numa narrativa, colocando aquela experiência numa determinada ordem – se afastando do sonho original e do núcleo recalcado e, possivelmente, distorcendo a representação e o desejo inconscientes. Trata-se do mecanismo de elaboração secundária.
Além disso, no sonho manifesto, o próprio desejo pode ser retratado por uma imagem figurada, uma representação metafórica deturpada. O mecanismo de condensação reunirá diversos elementos do conteúdo latente num único elemento do conteúdo manifesto – que, por sua vez, apresenta uma sobredeterminação de causas e sentidos. Em outras palavras, diversos pensamentos são representados e se apresentam sob a mesma imagem no sonho. O conteúdo manifesto é, então, muito mais curto que seu conteúdo latente. O deslocamento é outro mecanismo, onde detalhes aparentemente insignificantes ou irrelevantes do conteúdo manifesto estão, na realidade, conectados à pensamentos latentes importantes (e cruciais para o sentido do sonho). Aqui, a defesa atua transferindo a intensidade afetiva de uma determinada representação para outra.
Por fim, o trabalho do esquecimento é o último processo da censura para, de certa forma, dar o “golpe de misericórdia” depois da incidência simultânea de todos os mecanismos mencionados acima. A resistência é, de fato, implacável, e no contexto do sonho, o único elemento que não é alterado pelos mecanismos de elaboração são os afetos – as sensações conectadas às experiências emocionais do paciente, sempre presentes e reais na vida onírica.
O estudo dos mecanismos de elaboração dos sonhos é essencial na psicanálise. O trabalho do sonho se torna uma espécie de código secreto para contornar a censura, e apenas o próprio paciente possui a chave para decodificar o segredo através da livre associação. Partindo do conteúdo manifesto, vamos voltando ao conteúdo latente, como numa simples equação (conteúdo manifesto + associações livres = conteúdo latente). Na análise, o que vem espontaneamente em mente tem ligação com as ideias recalcadas, e a resistência do paciente em expressar essas ideias é um indício, justamente, de que se está aproximando do núcleo recalcado.
Segundo Freud, a interpretação dos sonhos ajudará o paciente a superar suas dificuldades. Através desta técnica investigativa, o analisando reconstituirá as ideias inconscientes recalcadas responsáveis por seu sofrimento e, levando-as à consciência, poderá então superar seus conflitos internos e recuperar sua capacidade de trabalhar, de viver, de amar.
Por fim, interessante frisar que o retorno do inconsciente recalcado, no contexto dos sonhos, é possibilitado graças aos diferentes mecanismos de elaboração (condensação, deslocamentos, elaboração secundária, esquecimento...) que vão buscar driblar a censura e materializar o sonho. O objeto da análise se torna o conteúdo manifesto do sonho, e como chegar ao conteúdo latente. Trata-se de uma sequência lógica para as teorias de Freud que, anos antes da publicação da Interpretação dos Sonhos, já estipulavam que os sintomas manifestados pelos pacientes histéricos eram, na realidade, outra forma de “retorno do reprimido”, e a técnica preconizada era a busca pela origem do sintoma (um trauma de infância). Os dois processos são muito similares e têm como objetivo chegar ao que foi recalcado por caminhos diferentes – um pela análise do sintoma, o outro pela análise do sonho.