Por Marta M. Kanashiro -
“Pedras sonhando pó na mina
Pedras sonhando com britadeiras
Cada ser tem sonhos a sua maneira”
(Lula Queiroga, Noite Severina)
Publicada em 1900, a “Interpretação dos sonhos” de Sigmund Freud é um dos pilares fundamentais da psicanálise e considerada uma das grandes obras do século XX, ainda que tenha sido escrita e publicada no século anterior.
A originalidade e ineditismo da obra acompanharam a efervescência científica, cultural e artística da virada do século e fizeram deste trabalho de Freud um marco mundialmente reconhecido.
O livro recupera temas já tratados nos estudos de histeria na direção de aprofundar e rever o leque conceitual psicanalítico, assim como de estabelecer avanços inéditos na psicanálise.
Para abordar o sonho, tema central da obra, é necessário indicar antes que Freud afastou outros sentidos do termo, como o devaneio em vigília ou as expectativas de futuro, para centrar-se na experiência que ocorre durante o sono e que o psicanalista define como a realização de um desejo. Tendo o sonho como foco, a interpretação aparece no livro como método, mas não em substituição a um método anterior. Esse movimento de continuidade se contrapõe ao que Freud realizou anteriormente em seu trabalho, a saber, a revisão acerca da validade da hipnose e do método catártico e sua substituição pela livre associação como método mais apropriado. Na obra de Freud aqui tratada, a interpretação dos sonhos e a livre associação não se excluem enquanto métodos mais ou menos válidos, mas coexistem e se complementam para a análise.
Para estabelecer a interpretação do sonho como método, Freud realiza uma espécie de dissecação ou fragmentação do sonho para compreender suas partes de forma minuciosa, observando as associações surgidas com cada uma dessas partes, tal como na (auto)análise que se tornou clássica: o sonho da injeção de Irma. Vale notar aqui que a estratégia de observação é a de fracionar em partes aquilo que se quer conhecer, talvez mais um dentre vários esforços de Freud para o reconhecimento científico da área em criação, mas que traz à tona temas (como as regras do método e o interessante debate que pode ser estabelecido com Descartes) que fogem ao escopo do solicitado para o presente texto. Para este momento, vale apenas dizer que o movimento cartesiano de fracionar em partes para analisar e ordenar se concretiza em Freud como marcador de cientificidade, mas na direção de subverter o cogito cartesiano.
Para alcançar a definição freudiana do sonho como realização de um desejo, é necessário retomar a ideia de recalque. Nos estudos sobre histeria, recalque foi apontado como inibição, esquecimento ou repressão de um evento traumático e de afetos que não puderam ser devidamente expressados (ausência de ab-reação), em função das mais variadas imposições ou contextos vividos. Censurado pela consciência, isso que foi reprimido, recalcado ou tornado inconsciente (surge como, ou) gera sintomas. A análise empreendida por Freud mirava a gênese do trauma, a origem ou causa dos sintomas, ou no limite, aquilo que foi recalcado. Estabelecida essa relação entre trauma e sintoma é importante acrescentar que desejos (movidos constantemente pelo impulso na direção de algo) que não puderam ser vivenciados também são recalcados. A expressão ou realização desses desejos barrados pela consciência pode ocorrer em sonho, daí a definição de Freud: o sonho é a realização de um desejo.
Como veremos mais adiante neste artigo, o desejo não reaparece para se realizar ou expressar no sonho em sua forma pura, mas sim de maneira mesclada ou disfarçada. Por ora, é necessário destacar que essa reaparição, no sonho, do desejo tornado inconsciente é conhecida como retorno do recalcado. Assim, o que foi reprimido e expulso da consciência reaparece para se expressar ou se realizar de forma onírica; retorna, portanto, de uma instância inconsciente para um espaço que permite a lembrança consciente ainda que inexata e com traços, na maior parte das vezes, incoerentes ou não coincidentes com a realidade. Note que esse movimento entre recalcar algo e expressá-lo (ou retorná-lo, trazendo do inconsciente para o consciente) ocorre numa espécie de jogo ou negociação entre forças psíquicas, dentre outras, a censura e o impulso de expressar o desejo. O retorno do recalcado surge então como resultado dessa transação, a qual Freud chamou de formação de compromisso.
A esta altura, é possível concluir que sintoma e sonho se aproximam, pois ambos surgem como expressão ou realização do que foi recalcado, seja pela manifestação física ou onírica, respectivamente. É neste sentido, que também ambos podem ser compreendidos como retornos do recalcado, assim como a transferência, os chistes e atos falhos.
Compostos por fatos e acontecimentos mais recentes do cotidiano (restos diurnos), representações e afetos (por vezes desligados de suas representações), os sonhos são articulados pelo impulso para a realização de um desejo. A interpretação que se volta para os sonhos como método analisa o relato dos sonhos dos pacientes, ou o seu conteúdo manifesto que não coincide com o que de fato foi sonhado. A narrativa do analisando sobre o sonho busca estabelecer uma coerência, ordem ou sequência lógica para o sonho, o qual é marcadamente caracterizado pelas qualidades opostas: incongruência, desordenação, ilogicidade. Este esforço narrativo, denominado por Freud como elaboração secundária, carrega consigo censuras, defesas e resistências que atuam como distorção do sonho de fato sonhado e como proteção do conteúdo latente dos sonhos, os pensamentos oníricos reprimidos ou escondidos. A análise do relato e suas associações têm como intuito desvelar (e decifrar) este conteúdo latente. A interpretação permite, portanto, conhecer os sentidos do sonho ou realizar uma espécie de esforço arqueológico-investigativo para alcançar o recalcado, escavando camadas de distorções, o que ressalta a(s) resistência(s) e o conflito de forças psíquicas como norteadora(s) na análise freudiana. Desta forma, a análise mira não somente o conteúdo manifesto, mas sua relação com o conteúdo latente e os processos que transformam (ou efetuam a passagem) dos pensamentos oníricos latentes para conteúdo manifesto dos sonhos.
É na passagem do latente ao manifesto que se processa aquilo que Freud chamou de “o trabalho do sonho” e que nomeia o capítulo VI da “Interpretação dos sonhos”. De forma geral, trata-se de mecanismos de distorção do sonho de fato sonhado ou de operações que permitem que o sonho seja definido como a realização de um desejo, ao que se acrescenta agora o adjetivo disfarçado. Afinal, na perspectiva freudiana, apenas pelo disfarce é possível que aquilo que foi reprimido ultrapasse a censura na direção de um espaço mais consciente.
Para que os sonhos apresentem-se na forma relatada, Freud aponta como dois fatores principais a condensação e o deslocamento. O trabalho de condensação realiza uma compressão do volume sonhado em um fragmento ou realiza uma reunião de diversos aspectos ou elementos numa figura única, numa única palavra ou ponto. Neste trabalho do sonho, uma representação (que pode ser uma pessoa, objeto, palavra, imagem etc) assume o lugar de várias outras. Essa compressão pode ainda anular a sequência temporal lógica unificando presente, passado e futuro, assim como reunir sentimentos antagônicos, diferentes sensações e percepções e construir figuras quiméricas ou uma composição de elementos diversos. Remetendo ao sonho da injeção de Irma, Freud exemplifica Irma como figura onírica condensando várias outras pessoas pelos aspectos e situações a que se conectava em seu relato do sonho. No caso, Irma onírica condensava aspectos da própria filha de Freud, outra paciente, uma criança examinada em outro momento, dentre várias outras. Já o trabalho de deslocamento (que pode estar contido na condensação) transfere uma representação para outra, sem menção ao contexto original e modificando o foco e a intensidade, ou seja aspectos e detalhes importantes (com alto valor psíquico) são transferidos para elementos insignificantes (com baixo valor psíquico). A ênfase maior em determinado aspecto é operada a partir de várias direções possíveis do deslocamento e da seleção de conteúdos diferentes. Assim, o que é incluído (nem sempre o principal) ou excluído do sonho é uma operação com determinações múltiplas (o trabalho da sobredeterminação). É esse movimento que determina maior ou menor valor aos elementos do sonho.
Ao estabelecer esses trabalhos do sonho, Freud promove uma tipificação e um detalhamento dos movimentos realizados para sua formação. Considerando a supracitada tarefa (e método) de interpretação dos sonhos, situar as operações realizadas pelos trabalhos do sonho é fundamental para a análise, pois aponta os caminhos que o psicanalista deve percorrer (numa espécie de engenharia reversa) para chegar ao recalcado.
Ao constituir o sonho por muitas camadas de operações de defesa e resistência que impedem de alcançá-lo, Freud sinaliza o sonho (de fato sonhado) como inalcançável ou inexistente (em seu sentido empírico). A sensação deve-se ao fato da construção do sonho ser realizada por Freud a partir das resistências, como que afirmando algo pela sua negação (impossibilidade de alcance). A teoria freudiana ao centrar-se na(s) resistência(s) destaca o conflito como elemento estrutural fundamental. Forças e direções contrárias (conflitantes) e a energia para a realização desses movimentos compõem assim o funcionamento dessa estrutura que a psicanálise freudiana pretende decifrar e que a obra Interpretação dos sonhos esmiúça tão finamente.