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Caso Dora - seria Freud um culpado inocente?

Caso Dora - seria Freud um culpado inocente?

Por Camila Ferreira de Avila - 

“Este histórico de apenas três meses é abarcável e memoriável; mas seus resultados permaneceram incompletos em mais de um ponto de vista.... Desse modo, posso oferecer aqui apenas um fragmento de uma análise”. (Freud, 1905)

“Bruchstuck einer Hysterie-Analyse” em Alemão, “Fragmento da análise de um caso de histeria” em português ou simplesmente o “O caso Dora”. Sempre me intrigou as escolhas dos nomes fictícios dos pacientes de Freud. Por que ele teria escolhido o nome “Dora” para Ida Bauer? A pesquisa etimológica do nome Dora resultou em alguns achados, nome de origem grega que significa presente ou dádiva (dôron). Fico imaginando quais foram os motivos pelo qual Freud escolheu este e não outro nome feminino, existiram motivos inconscientes para atribuir a Dora este status de presente ou dádiva? Existem escolhas que não são influenciadas pelo inconsciente? Para Freud com certeza não.

Ainda sobre o nome Dora, a palavra pode ter outros significados como, por exemplo, na Botânica, dora (Sorghum dora) é uma angiosperma (tem a capacidade de produzir flores e frutos), da família das gramíneas, sorgo -apesar de pouco utilizado no Brasil para o consumo humano, mas é o quinto cereal mais importante do mundo, muito consumido na África. Mas entre a Grécia e a África, o que esperar de Dora?

O que teria levado Sigmund Freud a publicar e se expor no âmbito científico através de um caso de insucesso? Para aqueles que não tiveram a oportunidade ainda de ler “O caso Dora” não espere encontrar um relato de sucesso total, ao contrário, será a leitura de um Freud que por vezes contradiz seus achados, mais focado em construir uma teoria do que ajudar a sua paciente. Mesmo com erros e descuidos Freud não apenas escolheu publicar o caso (Dora foi atendida em 1900, Freud escreveu o artigo em 1901 e publicou em 1905), como escolheu também um nome com significado de presente. Imagino então que Freud compreendia que Dora era uma mistura de dôron (presente) com Sorghum dora, com capacidade de produzir flores e frutos e que após transformações poderia alimentar a teoria Psicanalítica.

Clarice Lispector tem uma frase que diz: “passei a vida tentando corrigir os erros que cometi na minha ânsia de acertar. Ao tentar corrigir um erro, eu cometia outro. Sou uma culpada inocente”, e é nesta perspectiva, olhando Freud como um culpado inocente que podemos compreender a publicação do Caso Dora. Publicou o caso Dora entre “A interpretação dos sonhos” e os “Três ensaios da teoria da sexualidade”, usou o caso para fazer a ponte entre teoria e prática. Mas sempre com uma pontinha de culpa, acrescentando notas na publicação do caso por vários anos.

A Psicanálise ainda era vista com descrença pela classe médica, Freud era alvo constante de críticas. No tratamento de Dora, pretendia demonstrar o uso de técnicas da psicanálise, bem como comprovar seus escritos sobre sexualidade infantil e histeria. Neste período a hipnose e o método catártico haviam sido abandonados enquanto técnicas psicanalíticas, Freud já fazia uso da associação livre. Sem a pretensão de trazer uma definição teórica fechada, a associação livre é uma técnica que consiste em que o paciente fale livremente sobre tudo que vier à sua mente. A ideia é reduzir as resistências no fluxo de pensamentos. Entretanto, percebe-se em várias situações descritas por Freud que ele direcionava as ideias de Dora ao encontro da construção de sua teoria (principalmente nos conteúdos ligados à sexualidade). Neste aspecto apesar de não contribuir com Dora conforme esperado, foi possível para Freud ampliar a ideia acerca da origem das patologias para além do que se imaginava anteriormente.

Outro ponto abordado por ele foi o uso da interpretação dos sonhos nos atendimentos. Em destaque dois sonhos trazidos por Dora foram enredo de muitas sessões. Para Freud a interpretação dos sonhos seria um auxílio para trazer à tona conteúdos reprimidos ajudando na elucidação dos sintomas. A interpretação dos sonhos era análoga à interpretação dos sintomas. Freud buscou construir sua teoria baseado em seus casos clínicos. Utilizou o atendimento clínico para concretamente interpretar os sonhos da paciente, teoria e prática em uma relação de co-dependência.

Paralelo ao seu objetivo inicial Freud começou a perceber o surgimento de uma dinâmica muito importante na relação médico/paciente denominada transferência. Freud atendeu Dora por apenas três meses, e emblematicamente, a paciente abandonou o tratamento em 31 de dezembro. A ideia de transferência pode ser compreendida como uma reedição de afetos do paciente na figura do terapeuta, por exemplo: a relação com a mãe, ou com o pai, ou com um namorado. Uma dinâmica que acontece, sobretudo, no tratamento psicanalítico. O paciente revive tais afetos com o analista. Tais afetos podem ser bons ou ruins. No caso de Dora, essa transferência foi negativa. Para Freud o abandono da paciente do tratamento aconteceu pois ele não interpretou a transferência, não houve um manejo adequado deste processo. Percebeu então o poder da transferência no sucesso ou fracasso do tratamento. O autor admite seu erro e aproveita deste mesmo erro para também justificar a publicação do caso destacando a importância e o cuidado que o psicanalista precisava ter com a relação médico/paciente. O encerramento prematuro do atendimento de Dora não possibilitou que Freud oferecesse resultados completos. Não conseguiu ajudar sua paciente, falhou. Em 1917 Freud escreve que “a transferência esta presente no paciente desde o começo do tratamento e, por algum tempo, é o mais poderoso móvel do seu progresso”.

As críticas à publicação e as falhas de Freud na condução do caso são várias, se estendem até os dias atuais. Mas em nada diminui a genialidade de Freud inclusive fazendo sua mea-culpa. É certo que ficou incomodado com seus erros– justificado com tantas notas posteriores, mas acredito que os avanços, inclusive, com os não acertos, o conduziram na aceitação de ser um culpado inocente, cometeu erros na ânsia de acertar. “Você é livre para fazer suas escolhas, mas prisioneiro das consequências” (Pablo Neruda).