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Por Camila Ferreira de Avila -
Reconheces Ceix, desventurada esposa, ou a morte modificou em demasia as minhas feições? Olha-me, vê-me, a sombra de teu marido, e não ele próprio. Tuas preces, Alcíone, de nada me valeram. Estou morto. (Ceix e Alcíone – as Alcíones)
Na mitologia grega Morfeu (filho de Hipnos – personificação do sono) é considerado o Deus dos Sonhos, responsável por trazer aos mortais mensagens e profecias dos deuses. Desde tempos remotos os sonhos povoam a imaginação dos homens e despertam muita curiosidade. Por que sonhamos? O sonho é um presságio? Todos sonham? Sonhamos todos os dias? É um mecanismo para acessar a verdade? É uma abertura de comunicação com as almas em outra dimensão? Ou apenas um mecanismo neurológico?
Como tudo que diz respeito ao funcionamento psíquico do homem as respostas podem ser afirmativas para tudo, afirmativas em parte, negativas no todo, mas a grande verdade é que depende! Depende de com que olhos analiso os sonhos: olhos científicos, neurofisiológicos, religiosos, psicológicos, psicanalíticos, psicóticos, freudianos. Infinitas possibilidades...
A obra de Sigmund Freud “A interpretação dos sonhos” (1900) carrega nas entrelinhas muito mais do que as palavras lá impressas. Freud depositava nela uma esperança muito grande no impacto de seus escritos e o futuro da Psicanálise que ainda germinava como teoria e prática médica. Propositalmente ou não ao longo da obra o autor além de interpretar sonhos, construía a base da Psicanálise. Descreve a existência de um aparelho psíquico, a existência do inconsciente, e ainda, a maneira de acessar este inconsciente. Será que Morfeu apareceu nos sonhos de Freud trazendo profecias? Na história de Ceix e Alcíone, Morfeu voou silenciosamente pela escuridão até a cama de Alcíone e assumiu a forma de Ceix a pedido de Iris para trazer uma mensagem.
Mas afinal o que os sonhos nos dizem? Lembre-se de que vamos olhar para este acontecimento psíquico através das lentes freudianas (interpretadas por mim neste momento) e nesta abordagem os sonhos representam a manifestação de desejos reprimidos, os desejos são sempre a motivação para sonhar. Acontecimentos misturam-se com afetos e fantasias, os sonhos não são lineares, são confusos e quanto mais pensamos e descrevemos o que foi sonhado mais distantes do sonho original permanecemos. Quando sonhamos o tal desejo que busca satisfação vem envolto em uma cortina de fumaça que mescla restos diurnos (coisas que vivemos concretamente naquele dia), com lembranças da infância, preocupações futuras, atividades próximas do sono, sensações fisiológicas e claramente fica muito confuso encontrar qual seria este desejo original que motivou aquele sonho. Freud compreendeu que tais desejos por algum motivo não podiam ser acessados tão facilmente pelo consciente e por isso vinham tão disfarçados. Acho que tudo isso é obra de Morfeu, o ser alado com a capacidade de adquirir várias formas confundindo os mortais.
Para Freud os sonhos seriam a primeira grande manifestação do inconsciente, assim como os sintomas, atos falhos e a transferência na relação terapêutica. Tentando organizar parte das ideias do autor faz-se necessário compreender que no mecanismo dos sonhos um desejo real é retirado / reprimido da consciência e represado no inconsciente, e, para que não retorne tão facilmente para a consciência alguns mecanismos são acionados. Em “A interpretação dos sonhos” Freud denominou tais mecanismos de trabalho do sonho. Alguns destes trabalhos seriam: a condensação, o deslocamento, o afeto e a elaboração secundária.
No sonho todo material psicológico é sintetizado, resumido. O sonho faz o trabalho de condensação. Ao relatar para alguém um sonho recorremos a explicações e interpretações mais pormenorizadas do que apareceu concretamente no sonho. A condensação traz várias representações em torno de um único representante. São cadeias associativas que se fundem em torno de outras cadeias associativas. Caso fosse possível assistir ao próprio sonho, não seria possível compreender todas as ideias ali contidas, precisam de interpretação.
Em outro trabalho do sonho, o deslocamento, ocorre um processo de camuflagem, a representação original surge maquiada, mascarada, modifica as características e muda os padrões. O objeto casa não é a casa, o mar não é o mar. Por vezes o conteúdo mais importante aparece de forma muito sutil, enquanto conteúdos inúteis surgem cheios de detalhes. O conteúdo original do sonho (latente) torna-se cada vez mais disfarçado. O filho de Hipnos dormia em cama de ébano em uma gruta escura, rodeado de flores de dormideira com efeitos sedante e narcótico tal qual o Ópio. Estão os deuses nos inebriando tal qual a flor dormideira? Momentos em que a Psicanálise e os deuses gregos se misturam.
Mas existe algo que não se modifica, o afeto. Este permanece inalterado, as emoções não se transformam. A intensidade do afeto sentido nos sonhos é a mesma dos estados de vigília. Podem se ligar a representações diferentes, mas continuam lá. Morfeu não consegue transformar o afeto, a dor de Alcíone com a descoberta durante os sonhos da morte de seu Ceix é intensa e avassaladora, quando desperta de seus sonhos a imensa dor permanece. “... Levanta-te! Dá-me lágrimas, dá-me lamentos, não me deixes descer ao Tártaro sem ser chorado” (Ceix e Alcíone – As Alcíones).
Os trabalhos de condensação e deslocamento ocorrem ainda no inconsciente, já na consciência outro trabalho entra em ação: a elaboração secundária. A elaboração secundária está a trabalho da censura, preenche lacunas, organiza, tenta tornar o sonho mais coerente, compreensível e é claro modifica mais uma vez o desejo inicial. Faz-se importante compreender que o sonho manifesto (aquele que lembramos) é bem diferente do sonho latente, aquilo que é lembrado está carregado de simbolismos. A elaboração secundária, portanto, tem o papel de transformar o sonho latente em sonho manifesto.
E assim, repentinamente termina este sonho, Morfeu retorna para sua gruta escura cercada de flores de dormideira. Na próxima noite outros cenários, outros personagens, mas cuidado, Quintana adverte: “Não desças os degraus do sonho para não despertar os monstros”. (Os degraus – Mario Quintana)