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Um sonho impossível

Um sonho impossível

Por Fernanda B. Hisaba - 

O conteúdo recalcado em nosso inconsciente busca, a todo momento, fazer-se sabido, tornar-se explícito e acessível, de tal forma que, descarregado, possa reduzir a quantidade de energia que nos afeta. O reprimido retorna, via de regra mascarado, nos chistes, nos atos falhos, na transferência, nos sintomas e nos sonhos.

O reprimido retorna, via de regra mascarado, nos chistes, nos atos falhos, na transferência, nos sintomas e nos sonhos.

Através da transferência, o analisando torna presente o trauma ocorrido no passado, o revive no ambiente terapêutico usando a figura do psicanalista para tal. Explicita seus afetos e desejos reprimidos. A transferência torna-se, desta forma, mecanismo fundamental através do qual o analista entra em contato com o conteúdo representacional que retorna do inconsciente do analisando.

Os sintomas, seguindo o mesmo processo regressivo que se dá na formação dos sonhos, obedecem a uma formação de compromisso entre as forças represadas no inconsciente e as resistências impostas pela censura, que procura manter desconhecidos os desejos que o paciente procura realizar. Para manifestar o resultado deste acordo, o paciente irá se valer de um elo enfraquecido presente em seu organismo, como um tornozelo torcido, um joelho comprometido por um reumatismo, um estômago sensível, um terror a ele incutido na infância.

Através dos sonhos, o homem busca a satisfação de um desejo reprimido, satisfação essa que ocorre sempre no tempo presente, e que se torna possível através do movimento regressivo que traz o conteúdo alojado no pré-consciente e inconsciente de volta ao sistema perceptivo, sensorial.

Os pensamentos oníricos, que expressam o reprimido, as ideias intoleráveis ao nosso consciente, são “manipulados” extensamente pela censura para que possam emergir de forma tal que não sejam reconhecidos e prontamente reenviados ao inconsciente.

Ao trabalho realizado pela censura sobre os pensamentos oníricos denominamos trabalho dos sonhos. Estes seriam a condensação, o deslocamento, a transposição dos afetos e a elaboração secundária.

Assim, um desejo reprimido que procura se realizar faz o papel de força propulsora no desencadeamento dos sonhos. Arma-se de pensamentos oníricos, fragmentos de imagens mnêmicas, reminiscências presentes no pré-consciente, associa-se a um afeto em trânsito e, moldado pelas resistências através dos trabalhos dos sonhos, emerge na consciência, disfarçado, em tempo presente, transmutado em alucinação.

Muitas pessoas a serem representadas unem-se em uma só. Fragmentos de palavras condensam-se e emergem sob a forma de uma outra palavra, desconhecida. Forma-se um “condeslocafeto secundário”, que compõe o conteúdo do sonho, através do trabalho da condensação. Múltiplas cadeias associativas são representadas em uma única, sobre determinada, que resume, em um conteúdo relativamente curto, o extenso material que constitui a fonte de um único sonho. Dessa forma, o trabalho da condensação satisfaz a necessidade de conduzir ao consciente uma enorme quantidade de informações em um ínfimo intervalo de tempo e espaço.

Porém, não satisfeita com o disfarce precário oferecido pelo trabalho da condensação, a censura impõe mais uma barreira. Através do deslocamento, o intolerável desejo de “matar o papai”, que é o provedor, que trabalha no campo e manuseia uma enxada, transforma-se em “queimar a colheita”. Talvez, aquela pessoa que, pelo trabalho da condensação, chama-se “Flanetecelo” e tem o meu nariz, os olhos do meu irmão, a voz da minha mãe e anda como meu tio, ateie fogo ao trigo. E o trigo, que me lembra cevada, me possibilitará celebrar, à beira da fogueira, tomando cerveja e dando risadas. O intenso afeto associado ao desejo de morte liga-se à ideia da celebração, destituída do pesaroso significado relacionado ao desejo primário, permitindo que eu alegremente inale a fumaça da cremação; desta forma, posso dar “descarga” a essa imensa quantidade de energia que me exauria, e que, provinda do inconsciente, incessantemente me torturava.

Ainda é possível que, submetido à elaboração secundária, crie um contexto, e o sonho que contarei em minha sessão de psicanálise começará com um convite para um luau no interior. E haverá violão tocando “Pra não dizer que não falei das flores”; comeremos batata-doce (que estava na maionese que fiz no jantar) assada na fogueira e um cachorro meio ébrio apagará com xixi as últimas brasas, tristes remanescentes de uma vida infeliz...

Aliás, provavelmente me esquecerei de tudo isso, e contarei que me lembro de ter dançado ao redor de uma fogueira ontem à noite, e me encontro exausta pelo intenso trabalho do sonho e estupefata com seu parco volume. E um odor de crematório me trará uma estranha sensação de paz.

Conhecer o trabalho dos sonhos permite ao psicanalista vislumbrar uma porta de acesso ao universo reprimido do sonhador. Assim, pode-se dar início ao árduo trabalho investigativo do par terapêutico que, em última instância, procura alívio através da descarga de um quantum de energia represada no inconsciente deste sonhador.