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Tecendo a clínica psicanalítica: o percurso freudiano da hipnose à associação livre

Tecendo a clínica psicanalítica: o percurso freudiano da hipnose à associação livre

Por Alba Tengnom - 

“Cinza, caro amigo, é toda teoria e verde a dourada árvore do saber” (Mefistófeles, em Fausto de Goethe).

Sem o saber clínico construído ao longo da experiência de trabalho de análise de inúmeros pacientes, não seria possível a Freud desenvolver as concepções teóricas psicanalíticas. Teoria e técnica são complementares e se constroem mutuamente na obra freudiana.


Porém, enquanto a teoria ganhava visibilidade e estivesse de certo modo estabelecida, o procedimento terapêutico ainda lutava para obter reconhecimento. O desenvolvimento da técnica da associação livre, regra fundamental da Psicanálise se dá de maneira gradual a partir do distanciamento de Freud em relação às técnicas hipnótica, sugestiva e catártica. Somente a partir de sua autoanálise e da experiência clínica Freud foi capaz de formular e aprimorar pouco a pouco a técnica psicanalítica, possibilitando o acesso ao material recalcado e revelando ao paciente parte de seu inconsciente.

Na técnica hipnótica utilizada inicialmente por Charcot e outros neurologistas no século XIX, o médico induzia o paciente mediante diferentes recursos, como o movimento de um objeto de modo pendular, a uma condição próxima ao sono. O doente em estado de passividade psíquica atendia aos comandos do hipnotizador para que narrasse fatos que não seria capaz de recordar em estado de vigília. O médico exercia, desse modo, grande poder sobre as ações corporais e o psiquismo do doente. A técnica sugestiva era aplicada juntamente com a hipnose: o paciente era levado ao estado hipnótico e o médico sugeria que o sintoma desaparecesse, o que geralmente ocorria temporariamente. O mérito do método hipnótico está na diferenciação dos doentes histéricos de outros doentes, e na descrição de sintomas, mecanismo e diagnóstico de uma doença até aquele momento ignorada como psicopatologia e considerada uma dissimulação.

Influenciado por Charcot no início de sua prática clínica, Freud também utilizou a técnica hipnótica sugestiva, mas pouco a pouco foi mesclando-a com outras técnicas, ao perceber sua utilidade para investigar as origens do trauma. No entanto, foram diversos os entraves encontrados por Freud ao aplicar a hipnose, um deles o fato de que nem todos os pacientes eram hipnotizáveis. Havia também a limitação da hipnose em vencer as resistências do paciente, já que a técnica apenas as suspendia temporariamente e não permitia observá-las para investigar as causas do adoecimento por meio da rememoração dos traumas. Sem uma investigação das causas da doença, os sintomas reapareciam.

Em seu texto Sobre a Psicoterapia, de 1905 [1904], Freud aponta uma diferença fundamental entre as técnicas sugestivas e o método psicanalítico inspirando-se na comparação que faz Leonardo Da Vinci entre as artes da pintura e escultura. Per via di porre seria o modo de operar da sugestão hipnótica, que não se interessa em investigar a origem e significado dos sintomas, e à semelhança da pintura que apenas acrescenta tinta a um quadro, introduz uma sugestão que busca se sobrepor à ideia patogênica. Per via di levare seria, por outro lado, o modo de atuar do método psicanalítico que, tal como o ato de esculpir em pedra, em vez de acrescentar algo, procura retirar, extrair, fazer aflorar a expressão e a gênese dos sintomas e do contexto psíquico que levou à patologia.

A chamada técnica catártica, utilizada para fins terapêuticos pela primeira vez por Joseph Breuer, também foi utilizada por Freud e descrita conjuntamente por ambos em Estudos sobre a Histeria. Diferentemente da hipnose, a técnica consistia em evocar lembranças associadas ao trauma, trazendo à consciência elementos inconscientes. Baseava-se também na teoria do trauma psíquico, mas introduziu uma mudança na relação entre médico e paciente, pois, pela primeira vez, o paciente devia tomar a iniciativa de investigar seu passado, em vez de submeter-se às ordens do médico na sugestão hipnótica. Ainda que sob hipnose, o paciente era orientado a recordar do momento das primeiras manifestações da doença, bem como do contexto em que o sintoma foi produzido. Quando a cena traumática era revivida na sessão, o afeto ligado a essa lembrança era trazido à consciência e liberado por meio da expressão verbal, percurso que geralmente suprimia o sintoma.

O procedimento catártico pressupunha, entretanto, que o paciente fosse hipnotizável e fundava-se na ampliação da consciência instaurada na hipnose. Embora a técnica ajudasse a trazer lembranças, pensamentos e impulsos que até então estavam fora da consciência, mostrou-se insuficiente quando as observações revelaram um quadro mais complexo da doença: não se tratava de uma única impressão traumática, mas de uma série de impressões de difícil identificação e solução que influíam na gênese dos sintomas.

A partir da constatação de que grande parte dos pacientes neuróticos não era passível de ser hipnotizada, de um interesse maior na investigação das origens da doença e de um pedido direto de uma paciente para que ele a deixasse falar livremente sem fazer perguntas, Freud passa a aplicar mudanças técnicas no procedimento catártico, abandonando o recurso à hipnose e introduzindo gradualmente o método da associação livre.

Conforme descrito em seu artigo O Método Psicanalítico de Freud, de 1904, ele atendia os pacientes acomodando-os confortavelmente em um divã, sem outras distrações, enquanto posicionava-se fora do campo visual dos pacientes, sentado em uma cadeira atrás deles. Diferentemente da técnica catártica, Freud não exigia que os pacientes fechassem os olhos, não os hipnotizava e evitava também qualquer contato e procedimento que pudessem lembrar a hipnose. A sessão transcorria como uma conversa entre duas pessoas “igualmente despertas”, sendo que uma delas não realizava esforços físicos nem recebia estímulos que pudessem desconcentrá-la de sua atividade anímica.

A associação livre tornou-se a regra fundamental da técnica psicanalítica e, ao passo que excluía um material rico em lembranças e imaginação e uma ampliação da consciência comum às sessões de hipnose, possibilitava, por outro lado, a descoberta de um importante material de investigação: as ocorrências involuntárias dos doentes. Ao contrário do que acontecia nas sessões de hipnose, Freud pedia aos pacientes que falassem à vontade, passando de um assunto a outro, instruindo-lhes para que contassem tudo que lhes vinha à mente, mesmo que fosse algo aparentemente sem importância, sem sentido ou não relacionado ao assunto em questão. Pedia também que não excluíssem pensamentos ou ocorrências que parecessem vergonhosos ou embaraçosos.

Durante suas investigações, Freud observou lacunas nas lembranças dos pacientes em relação à narrativa da doença, em razão de esquecimento de fatos e causas, confusões temporais, que deixavam as narrativas incompreensíveis. Essas amnésias eram para ele resultado de um processo de recalque motivado por sensações de mal-estar diante da resistência que há contra a reprodução dessas lembranças.

No texto Recomendações aos Médicos que Exercem a Psicanálise, de 1912, Freud enumera várias recomendações sobre o método psicanalítico para ajudar os profissionais da área médica a manter o instrumental necessário a uma escuta precisa e fluente. Para ele, o analista deve tentar manter um estado de atenção que denominou de “atenção flutuante”, em que o terapeuta deve recordar dos relatos de cada paciente sem dar atenção diferenciada nem se fixar em nenhum conteúdo específico do discurso do paciente. Desse modo, o analista poderá suprimir pré-julgamentos conscientes e defesas, mantendo-se atento ao seu próprio inconsciente durante o processo de escuta. Lembrar tudo em igual medida constitui uma espécie de contrapartida necessária à exigência feita ao paciente para que conte tudo o que lhe vem à mente, sem criticar ou selecionar nada em particular. O objetivo seria manter as influências conscientes afastadas da capacidade de memorização para que apenas a “memória inconsciente” participe da sessão, o que pressupõe que o analista deve ouvir sem se preocupar se vai lembrar ou não.

Freud também aconselha o analista a não tomar notas extensas durante a sessão, o que prejudicaria o estado de atenção flutuante, causando impressão negativa no analisando, além de ser outra forma de selecionar e fixar a atenção em algum elemento trazido pelo paciente. As notas tomadas para fins científicos também influenciariam o estado de atenção flutuante e devem ser feitas após a sessão, embora a qualidade de um relato colhido de tal modo seja questionada. A solução proposta por Freud é que os registros sejam trabalhados somente após o término da análise, caso contrário, é possível que o analista construa expectativas e planos que prejudiquem o tratamento.

Freud convida o analista a observar o trabalho do cirurgião que deixa de lado seus afetos de modo a se concentrar em realizar a cirurgia da melhor forma possível. A ambição terapêutica, de “curar”, seria um sentimento perigoso que poderia expor o terapeuta às resistências do paciente e ao jogo de forças que justamente se pretende desarticular para que o tratamento tenha êxito. Certa posição de reserva e frieza favoreceria a vida emocional do analista e ofereceria melhor assistência ao analisando. Além disso, aconselha o analista a não se fixar em expectativas ou na ideia de reconhecimento ou retraimento perante as críticas, afetos que também prejudicariam o trabalho de análise.

Ainda no mesmo texto, a importância da atenção flutuante do analista como contrapartida à regra fundamental da associação livre é reafirmada. Para ilustrar essa ideia, Freud faz uma analogia com a comunicação telefônica: as ondas sonoras emitidas são transformadas em oscilações elétricas pelo transmissor que, por sua vez, são revertidas em ondas sonoras pelo receptor. O analista funcionaria como receptor, posicionando seu inconsciente a partir da associação livre para sintonizar o inconsciente do analisando, reconstituindo as ocorrências trazidas por ele à sessão.

Outra recomendação feita por Freud é que o analista não mantenha em si resistências que o impeçam de entrar em contato com o que seu inconsciente captou durante a sessão. As resistências funcionariam como outra forma de seleção e deformação do material trazido pelo paciente e, por esse motivo, recomenda que o analista também se submeta a uma análise a fim de conhecer seus complexos e resistências. Cada recalque não solucionado em si mesmo corresponderia a um ponto cego na percepção analítica do médico.

A análise traz muitos benefícios aos analistas que a buscam sem a pressão da doença e com um propósito de examinar o oculto em si mesmos, nos diz Freud. O desprezo pela autoanálise traria consequências desastrosas: a dificuldade em compreender os pacientes e aprender com eles, o risco de trazer danos ao processo de análise do doente, a projeção de suas autopercepções na ciência, contribuindo para o descrédito da Psicanálise e induzindo outros inexperientes a equívocos semelhantes.

O cuidado com a transferência é uma recomendação enfatizada por Freud: o analista deve evitar falar sobre sua vida íntima e seus conflitos interiores com o analisando, caso contrário, o paciente pode acabar relatando o que já sabe, sem propriamente revelar o inconsciente. Compartilhar afetos traria ainda mais dificuldades ao doente na superação de resistências e poderia criar uma tentativa de inversão na relação entre ele e o analista, estimulando o paciente a analisar o analista. O médico deve manter uma opacidade frente ao analisando, atuando mais ou menos como uma superfície espelhada, sem mostrar nada além daquilo que é mostrado a ele pelo paciente.

Além disso, devem-se evitar as ambições pedagógicas, assim como afastar a ambição terapêutica, pois é necessário respeitar as limitações do doente, considerando como diretriz suas capacidades, em vez de levar em conta os desejos do analista em relação ao analisando. Uma última ressalva é sobre o engajamento intelectual do doente, que deve se concentrar na tarefa proposta pela regra psicanalítica da associação livre, e o médico não deve propor tarefas, como a leitura de textos sobre a Psicanálise, pois o analisando deve construir um percurso próprio dentro da análise, sem recorrer à intelectualização de suas experiências. O respeito à regra psicanalítica, e não o conhecimento teórico sobre a Psicanálise é o caminho que conduz à eficácia terapêutica.

No texto Fragmentos da Análise de um Caso de Histeria, publicado em 1905, conhecido como o relato do Caso Dora, Freud apresenta detalhadamente o uso da interpretação dos sonhos em um caso clínico, reafirma também a etiologia da sexualidade na causa das neuroses, além de antecipar ideias a respeito da sexualidade infantil.

Esse caso clínico é emblemático em razão de sua importância para o desenvolvimento da Psicanálise. São apresentadas pela primeira vez ideias sobre o Complexo de Édipo e sua Dissolução, a Bissexualidade humana e o desenvolvimento do conceito de Transferência. Freud descreve de maneira mais amadurecida suas ideias psicanalíticas, além de apresentar resultados da interpretação de dois sonhos dentre outros fragmentos trazidos pela paciente que ele pretendeu proteger sob o pseudônimo de Dora.

Parecia, no entanto, prever os tropeços que acompanhariam o caso ao afirmar “Quem, como eu, desperta os piores demônios que, perfeitamente domados, habitam o peito humano, a fim de combatê-los, tem de estar preparado para não sair ileso dessa luta”. (FREUD, 1904, p. 71) Freud deixa entrever no texto um distanciamento em relação às suas recomendações aos praticantes da Psicanálise. Em vários pontos de sua interpretação, é Freud quem realiza a livre associação em lugar da paciente, que é retratada como uma expectadora e ouvinte de suas conclusões. O médico aqui se torna muito ativo e mais “falante” do que a paciente, contrariando a regra fundamental, além de utilizar materiais de outras sessões na interpretação, conduta que ele mesmo já havia reprovado em suas recomendações aos médicos. Freud parece interessado em confirmar ideias que já postulara, como as causas da histeria na sexualidade (ou seja, na ausência de relações sexuais “normais”), além de demonstrar uma inclinação pessoal a respeito da homossexualidade, condenando-a a uma condição patológica. No posfácio do texto, Freud reconhece que se descuidara quanto à transferência, que falhara em perceber antecipadamente e que afirma ser o motivo da interrupção prematura do tratamento pela paciente.

Entretanto, em uma afirmação positiva para o desenvolvimento da Psicanálise, Freud conclui nesse relato de caso que o tratamento psicanalítico é constituído da análise da transferência, fato que, dentre outros aspectos, diferencia a Psicanálise dos demais métodos terapêuticos.

Obras Consultadas:

ESCLAPES, Alexandre. O Caso Dora – Reveries #4. 2018. (46m40s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=BCM0G2moV5s>. Acesso em 8 de jan. 2019. 

FREUD, Sigmund. 1856-1939 A interpretação dos sonhos / Sigmund Freud; tradução de Walderedo Ismael de Oliveira; Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001.616 pp. 

––––––––––. Fragmentos da análise de um caso de histeria. (1905 [1901]) in: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. VII. 

__________. (1904 [1903]) O método psicanalítico de Freud. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1989.

___________. (1910) Psicanálise “silvestre”. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Vol. XI. Rio de Janeiro: Imago, 1970.
 

___________. (1912) Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XII, 2006.
 

__________. (1905 [1904]) sobre a psicoterapia. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1989.
 

ROUDINESCO, Elisabeth, Dicionário de psicanálise/Elisabeth Roudinesco, Michel Plon; tradução Vera Ribeiro, Lucy Magalhães; supervisão da edição brasileira Marco Antonio Coutinho Jorge; Rio de Janeiro: Zahar, 1998.