Por Alê Esclapes -
Um famoso psicanalista chamado Bion escreveu uma frase célebre que até hoje é discutida entre os psicanalistas – “O analista deve estar na sessão sem desejo e sem memória”. Eu me pergunto se todos nós não deveríamos estar no mundo “sem desejo e sem memória”. Mas antes de responder a minha própria pergunta, gostaria de analisar um pouco mais a fundo o que chamamos de memória.
Desde o nascimento, ou até mesmo antes, nosso corpo é bombardeado de sensações corpóreas, como quente, frio, dor, fome, desconforto, prazer, desprazer, e assim sucessivamente. Muitos de nós entendemos a memória como fiel depositária de todas essas sensações.
Quando crescemos adquirimos a fala, e através dela um novo universo se revela. A comunicação com o outro que até então era por meio do corpo a corpo, pode ser mediada por algo que não nos toca diretamente. E a partir daí está também criado um mundo psíquico onde as palavras, juntamente com imagens e sensações, vão formando nossa memória.
O tempo passa e nossas experiências com nossos pais, mães, irmãos, amigos, professores, além de ir formando um conjunto de experiências vão definindo quem somos nós. Uma bela pergunta nessa hora seria “qual a sua face antes de seus pais nascerem?”. Mas não vamos nos focar hoje nessa pergunta. Tem um elemento importante que compõe a experiência da lembrança que é a “atenção”. A cada segundo, podemos prestar atenção em apenas uma coisa. Podemos fazer várias coisas ao mesmo tempo dizem alguns. Mas num segundo, ou numa fração de segundo, podemos fazer apenas uma coisa, pensar uma coisa.
O pensar é a sucessão desses pensamentos ao longo do tempo. Se eles fazem ou não sentido ao pensador, também é outro ponto importante, que fica para outra hora. Quando escolhemos algo em detrimento de todas as outras, ou seja, quando nossa atenção está direcionada, nesse ínfimo segundo para algum lugar, alguma pessoa, alguma situação, ou algum outro pensamento, todas as outras possibilidades se fecham nesse instante. Essa seleção do que pensar pode ser atribuída a uma coisa chamada “desejo”. Nossa seleção é direcionada pelo “desejo”.
Isso significa que quando olhamos para trás, no universo infindável de coisas que guardamos desde o nascimento em nossa memória, fazemos uma seleção.
Nossa atenção vai e seleciona os fatos e dados e cria aquilo que chamamos de “lembrança”. Lembrança seria, nesse sentido, nossa atenção selecionando pela atenção e pelo desejo aquilo que nos interessa, nos faz sentido, e descarta aquilo que não nos interessa, que não nos serve. A memória, ou lembrança, seria como uma conjugação do verbo “querer” no tempo passado. Toda vez que uma pessoa fala-nos livremente do seu passado, está falando inevitavelmente de seu desejo presente. Ela fala algo muito mais do que simplesmente lembranças. Fala do que gostaria de ter sido, do que gostaria de ser, do uso que essas lembranças podem servir no presente.
Mas nunca, jamais, uma lembrança, uma memória, é ingênua. Ela é sempre a presentificação do desejo. Agora podemos pensar numa frase que Nietzsche escreveu em sua “Quarta consideração extemporânea – da utilidade e inutilidade da história para a vida”. Assim como muitas vezes somos dominados pelo desejo, muitas vezes somos dominados pelas lembranças, pelo passado. Mas aqui reside uma armadilha: muitas pessoas acreditam que o passado tem vida própria, que não podem escapar de suas lembranças, quando na verdade não conseguem escapar de seus desejos. Nesse caso o amo (o Eu) se rendeu ao seu escravo (o desejo), que passa a comandá-lo. Não é mais o cachorro que abana o rabo, mas o rabo que abana o cachorro. Ou como disse Nietzsche – “O passado atormenta do homem”.