Por Giuliana Sagulo -
Assisti Philadélfia em 1993 , quando foi lançado.
Lembro-me que, apesar de muito jovem à época, o filme me emocionou bastante.
Ao assisti-lo novamente, 30 anos depois, tive novas experiências emocionais, talvez devido à minha própria maturidade ou ao tempo que passou. Essas experiências me fizeram refletir sobre como a sociedade talvez tenha amadurecido pouco, já que ainda enfrentamos os mesmos medos, rejeições, conflitos e intolerâncias.
O filme é estrelado por Tom Hanks, vencedor do Oscar de melhor ator, no papel de Andrew, Denzel Washington como Joe Miller, o advogado que, após superar seus próprios preconceitos, decide defendê-lo em sua luta nos tribunais contra a discriminação no local de trabalho, e Antonio Banderas, como marido de Andrew. A direção é de Jonathan Demme, conhecido por "O Silêncio dos Inocentes".
Já é possível presumir que se trata de uma obra que aborda temas sensíveis como discriminação e preconceitos, especialmente contra pessoas com o HIV/AIDS. É importante lembrar que, há 30 anos a discussão sobre orientação sexual e homossexualidade era um tabu ainda maior que hoje e a contaminação era frequentemente associada a esse grupo de pessoas.
Andrew era amado por sua família, que o acolhia e aceitava. No entanto, é essencial reconhecer que a marginalização de indivíduos na sociedade frequentemente tem suas raízes nos próprios lares e nas comunidades das quais fazem parte. A família, sendo um protótipo da sociedade, desempenha um papel de extrema relevância na formação de atitudes e crenças que influenciam nossa percepção da diversidade e afetam nosso comportamento diante daqueles que desafiam os padrões estabelecidos. As expectativas impostas pelos pais aos seus filhos muitas vezes são responsáveis por iniciar a discriminação e a rejeição desde o berço, perpetuando-se ao longo da vida e na sociedade em geral.
Ao assistir pela segunda vez, mais atenta, fui tocada pelas sutilezas dos olhares, pelos silêncios, pela música, pelas cores.
Uma cena que merece destaque é aquela em que Joe finalmente compreende que Andrew, antes de tudo, é um ser humano sofrendo, não apenas por causa da doença que o debilitou fisicamente, mas também pelo sentimento de desamparo que todos nós podemos sentir em momentos de extrema dor e solidão.
(Não foi isso que vivenciamos recentemente, de forma literal, ao perdermos pessoas queridas em meio a uma pandemia em que não pudemos ritualizar a morte e o luto ? Sozinhos estivemos quem ficou. Sozinhos estavam quem foi. Concretamente. Subjetivamente.)
A compreensão da “humanidade” de Andrew parece se dar especificamente na cena da opera, na qual, segurando o suporte com soro e medicamentos, move-se lentamente, em uma espécie de dança suave, enquanto ouve a música e explica à Joe o significado da peça (La Mamma Morta- Maria Callas).
Emocionado diz: “Trago sofrimento aos que me amam”, mas diz também : “Eu sou o amor”.
Joe, então, desafia suas próprias crenças e preconceitos ao se envolver emocionalmente com Andrew. Podemos considerar que, como homem negro, também conhece o preconceito em primeira mão.
Finalmente ele abre sua escuta e permite a conexão que somente as emoções proporcionam. Esse momento é marcado pela mistura de medo, desamparo, dor mas também, quem sabe , alguma esperança.
Nós, psicanalistas, assim tentamos fazer ao ouvir pessoas?
Andrew também parece compreender as "impossibilidades" de seu interlocutor, mas não se impõe de maneira rude ou "militante". Usa sutileza, doçura e determinação para falar de aceitação.
Penso que o filme permite estabelecer paralelos com as lutas da contemporaneidade.
Enquanto sociedade, ainda não aprendemos completamente o respeito às diversas orientações sexuais, nem superamos a crença de que a homossexualidade é "contagiosa" ou uma doença, e novas questões se impõem. Vivemos em tempos de ondas conservadoras que pregam intolerância e estigmatização.
O enfrentamento do preconceito , a busca por apoio, aceitação é uma luta compartilhada por pessoas com HIV/AIDS e transexuais, por exemplo.
Assim como Andrew, as pessoas transexuais podem enfrentar resistência e negação de suas identidades o que resulta em exclusão social, falta de acesso a oportunidades e discriminação generalizada. Não era contra isso, afinal, que Andrew lutou?
Não pretendo aprofundar as questões sócio-políticas desses temas aqui, até porque cada um possui características e desafios específicos.
Mas como analista, meu objetivo é refletir sobre o reconhecimento das dores daqueles que nos procuram, questionar minhas crenças e limitações, considerar meu viés pessoal e as influências da sociedade, e como tudo isso afeta minha percepção e abordagem clínica.
Há 30 anos Filadélfia continua sendo um filme atual e relevante.
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Direção: Jonathan Demme
Plataforma: Google Play