Por Wagner Alledo -
“Agora você tem que me dizer
Como é que nós vamos fazer?”
Compositores: Antônio Almeida e Dorival Caymmi
A Doralice de Antônio Almeida e Dorival Caymmi, imortalizada no ritmo da Bossa Nova pela voz de João Gilberto, é provocada: como é que nós vamos fazer? Doralice e Dora (a de Freud) possuem algo em comum. Duas histórias inacabadas, fragmentadas. Doralice se casou ou não se casou? E Dora, que conclusão podemos tirar da sua história?
“Fragmentos da análise de um caso de histeria” é o título do artigo publicado em 1905 em que Freud apresenta o Caso Dora. A Doralice da música surgiu 40 anos depois, em 1945, em gravação do grupo de samba Anjos do Inferno. Embora a história de Dora bem que também poderia ser um samba. Menina inteligentíssima, supostamente assediada pelo amigo do pai, sente-se desamparada pela família, anuncia o seu desejo pelo suicídio em função do sofrimento causado por sentimentos contraditórios, apresenta diversos sintomas físicos e procura o tratamento anímico do doutor Freud em busca de cura.
No texto, Freud descreve o tratamento de Dora e compartilha uma série de achados práticos que corroboram com a teoria que ele vinha desenvolvendo. Ao mesmo tempo, em vários momentos, ocorrem contradições. Algumas interpretações permitem inferir que determinadas posturas de Freud tiveram maior foco na comprovação da sua teoria até então do que na resolução dos problemas da paciente. Ele teria deixado “escapar” alguns detalhes. O Caso Dora é publicado entre duas obras fundamentais da teoria psicanalítica (A Interpretação dos Sonhos e Três Ensaios da Teoria da Sexualidade).
Tratava-se de um momento fundamental do desenvolvimento da Psicanálise, quando Freud havia abandonado a hipnose e o método catártico e vinha desenvolvendo os conceitos de associação livre e aqueles relacionados à interpretação dos sonhos, como deslocamento, condensação etc. Mas talvez o foco na comprovação desses conceitos não tenha permitido que Freud observasse mais profundamente dois outros, fundamentais para a sua teoria, e muito presentes nesse caso: a resistência e a transferência.
Com Dora, Freud experienciou profundamente a transferência negativa e a resistência e depois de algum tempo pode observar quão fundamental é a relação do analista com o seu analisado, assim como os impactos dessa relação nos resultados do tratamento. O caso inacabado de Dora permitiu a Freud evoluir na conclusão de que através da transferência com o analista o analisado acessa parte do seu inconsciente reprimido pela resistência.
Infelizmente para Dora essa conclusão tardia motivou sua desistência do tratamento e, ao fazer isso, ela não poderia conceber o tamanho da sua contribuição para o desenvolvimento da teoria e técnica psicanalíticas.
Após o Caso Dora, Freud se dedicou a buscar o aperfeiçoamento do manejo técnico da psicanálise, além de expandir a teoria desses conceitos. Tais reflexões resultaram em textos fundamentais como por exemplo “Recomendações ao Médico para o Tratamento Psicanalítico” e “Sobre a Dinâmica da Transferência”, ambos de 1912, e “Sobre o Início do Tratamento”, de 1913. Dois anos depois, em 1914, ele publica “Lembrar, Repetir e Perlaborar”, que introduz o conceito de neurose de transferência, quando a resistência é tão intensa que influencia diretamente no processo de recordar.
No fim, o Caso Dora foi um grande insucesso. Mas somente para a própria Dora. Seu papel para a psicanálise foi fundamental. O fracasso do seu caso abriu portas essenciais para o conhecimento teórico e técnico. Dora, assim como Doralice dos versos do samba, não respondeu com palavras diretas ao questionamento que lhe foi imposto. Mas, ambas, do seu próprio e legítimo modo, pavimentaram caminhos bastante concretos em busca de respostas para a pergunta:
E agora, Doralice, como é que nós vamos fazer?