Por Wagner Andreo Alledo Filho -
“Sonhar é acordar-se para dentro...”
(Mario Quintana)
Acordar-se para dentro, dar à luz o obscuro, conhecer a si mesmo... Mario Quintana, poeta gaúcho, reconhecido pela profundidade dos seus poemas e perfeição técnica, o “poeta das coisas simples”, propõe uma reflexão a respeito do sonho:
“Sonho. Um poema que ao lê-lo, nem sentirias que ele já estivesse escrito, mas que fosse brotando, no mesmo instante, do teu próprio coração”.
Seria para ele o sonho (nem sentirias) a manifestação (um poema) de uma emoção (do teu próprio coração) vivenciada no passado (que já estivesse escrito) mas que insiste em retornar (fosse brotando) e libertar-se (no mesmo instante)?
Quem poderá dizer?
O significado dos sonhos é tema de debate sob diferentes óticas, com forte influência religiosa, científica e cultural, variando a sua interpretação desde como uma simples manifestação da criatividade até como sinal de maus presságios e outras previsões futuras.
Para a psicanálise, o sonho é a manifestação de um desejo reprimido. Esse conceito surgiu em 1900, com a publicação do livro “A Interpretação dos Sonhos”, por Sigmund Freud, considerado o pai da psicanálise (na verdade, publicado em 1989, mas propositalmente datado de 1900. Tamanho era seu caráter inovador que, alterar a real data de lançamento em um ano e, assim, para o novo século que se iniciava, poderia conferir ao livro o título de “Obra do Século”).
Nesse livro, Freud aborda o sonho e sua interpretação buscando um caráter científico. Ao mesmo tempo que faz isso, cria os pilares fundamentais da psicanálise. Na obra Freud apresenta suas ideias sobre de onde vêm os sonhos, por que eles ocorrem e como funcionam. Apresenta o conceito de conteúdo manifesto, que é a descrição textual do que se recorda de um sonho, e quais são os processos que levam à transformação do pensamento em conteúdos manifestos. Conclui que os sonhos representam, de maneira disfarçada, a realização de desejos inconscientes que estão em conflito e buscam uma forma de se expressar. O material utilizado para sua formação encontra-se no inconsciente e a sua manifestação se dá através da união dos conteúdos escondidos (ou recalcados) às memórias e lembranças do dia a dia.
Ao fechar os olhos à noite, além do descanso físico, ocorre com o sono o relaxamento da consciência. Os mecanismos de defesa e censura que nos orientam durante o dia, em estado de vigília, se tornam ineficientes, e já não conseguem barrar totalmente a expressão dos desejos inconscientes. Estes então se unem a experiências e vivências que estão na memória e se manifestam buscando, através dessas associações, os disfarces necessários para driblar a defesa consciente. Não à toa muitas vezes os sonhos são confusos ou parecem não ter sentido. Ocorre que para superar o disfarce do verdadeiro desejo recalcado em um sonho é necessário empregar um processo de interpretação que ultrapasse o conteúdo. Freud categoriza esses disfarces como condensação, deslocamento, representações e elaborações secundárias.
O processo de condensação pode ser compreendido se comparado à leitura de uma poesia. À primeira vista, um verso pode se apresentar simplório e propor uma interpretação fácil, rasa ou direta. Mas uma análise atenciosa promove a abertura de um leque de interpretações e ideias ‘escondidas’ às palavras que pareciam não possuir essência ou profundidade de conteúdo. “Sonhar é acordar-se para dentro”. Quantas inferências podem ser atribuídas a essas cinco palavras de um verso de Mario Quintana? Freud conclui que o conteúdo manifesto do sonho é infinitamente menor que o conteúdo latente, por isso vários elementos do sonho manifesto são combinados em apenas uma imagem psíquica, com várias cadeias associativas. As imagens latentes, ou conteúdos oníricos, aparecem em sonho abreviados, condensados, pois são perturbadores demais para aparecer de forma completa. São como palavras que se apresentam inocentes ao primeiro olhar, mas permitem infinitas inferências se analisadas em um determinado contexto.
Junto à condensação, o deslocamento é outro mecanismo de defesa pelo qual a mente substitui uma reação emocional por outra imagem remotamente relacionada ao conteúdo original, transferindo emoções, ideias ou desejos com o objetivo de aliviar a ansiedade diante de impulsos insuportáveis. O deslocamento promove uma distorção do desejo inconsciente fazendo com que o conteúdo manifesto do sonho não mais se assemelhe ao conteúdo recalcado que o originou.
Mas como se dá o processo de escolha das imagens, palavras e outras representações que vão compor o conteúdo manifesto do sonho? Para Freud, essa escolha se dá pelo valor psíquico associado à imagem ou à sua capacidade de representar vários sentidos. Quando uma emoção se associa a esse material tem-se o processo de representação, através do qual uma imagem pode estar associada a uma emoção desproporcional ou invertida, por isso o conteúdo manifesto do sonho não permite a sua real interpretação. É através das emoções que se pode compreender o conteúdo onírico do sonho. O material de representação passa por deslocamento e condensação, mas as emoções permanecem inalteradas, sendo a busca pela sua compreensão o caminho mais adequado em direção o conteúdo onírico.
Mas há ainda outro complicador. O sonho pode ‘desligar’ os afetos do material de representação, buscando outras associações. Quando isso ocorre, as emoções podem sofrer supressão (desaparecimento do afeto nos sonhos), deslocamento (transferência de afeto para longe do seu representante ideativo numa outra parte do sonho), subtração (empobrecimento do afeto dos pensamentos no sonho), inversão (transformação de um afeto em seu contrário) ou reforço (intensificação do afeto ‘permitido’ no sonho em substituição ao ‘proibido’).
Não obstante a complexidade do processo de interpretação dos sonhos apresentado até aqui, cabe observar que a descrição do sonho ocorre quando já se está acordado ou desperto (estado de vigília) e a consciência plenamente reestabelecida em seu trabalho de defesa e censura. Surge então a possibilidade do consciente aplicar suas últimas energias em busca da censura com o trabalho do esquecimento, muito comum após uma experiência de sonho. Por fim, como que num “golpe de misericórdia”, a consciência pode buscar a promoção da elaboração secundária do conteúdo onírico, que atua no intuito de dar coerência ao sonho, preencher espaços vazios ou amenizar pensamentos absurdos à sua luz, apresentando um conteúdo manifesto mais ameno e aceitável, ocultando o conteúdo onírico à medida que o recria ou remodela.
Para a psicanálise, a escuta do sonho pode ser também um despertar, à medida que através da sua manifestação e relato, mediados pelo processo de livre associação, dá voz ao subconsciente e permite o desenvolvimento de um processo contínuo de descobrimento e autoconhecimento.