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Ratos, lobos e psicanálise

Ratos, lobos e psicanálise

Por  Willian Fausto Lourenço - 

A partir da descoberta do inconsciente e sua influência na vida psíquica e comportamental do sujeito, Freud desenvolve teoria e técnica para conhecer este universo desconhecido e chamou essa abordagem de psicanálise. Para Freud, existe um conteúdo manifesto e outro latente, esse último era o que mais o interessava, porém, era exposto pelo paciente de maneira disfarçada (sonhos, ato falho, sintomas, transferências, chistes) e provinha de vivências reprimidas pelo sujeito.

Nessa fase da técnica, Freud acolhia o que o paciente trazia (o que lhe vinha à mente – atenção flutuante) para, por meio da associação livre, interpretar o conteúdo e, supostamente, conhecer o inconsciente do paciente permitindo assim, que ele elabore e entenda suas questões neuróticas apresentadas. É bom dizer, que Freud já reconhecia limitações em sua técnica.

Sabemos que Freud entende o funcionamento mental a partir de três estruturas possíveis: a neurótica, a psicótica e a perversa. Focaremos nesse trabalho a neurose como principal mecanismo de defesa do que foi reprimido. Nesse modo de estruturar o inconsciente, Freud põe em evidência na sua técnica elementos valiosos como: a figura do pai e da mãe e a sexualidade infantil; o ter ou não um pênis e seus desdobramentos para a menina e o menino; os desejos em relação ao pai e a mãe que foram reprimidos e podem retornar como hostilidade, ódio, raiva, disputa, transferência; bem como o desejo da morte e da destruição dessas figuras parentais que também podem ser reeditadas na fase adulta; do mesmo modo, o papel da castração, as disputas amorosas libidinosas na infância e todos os seus conflitos que também são passiveis de serem revividos pelo sujeito em diversos âmbitos de sua vida, nos sonhos, sintomas e sentimentos ora opostos ora deslocados como já se pode deduzir.

Um dos casos famosos de Freud é o homem dos ratos. Um tratamento que durou mais ou menos um ano com um rapaz que apresentava impulsos obsessivos. Seus sintomas e práticas eram: ideia de que seus pais sabiam o que ele pensava, horror ao prazer, sentimento de punição e medo do pai, incapacidade para o trabalho, recriminação do desejo (inclusive o de eliminar o pai), disputa amorosa com o pai.

Nesse caso há muitos avances na técnica de abordagem do inconsciente como: permitir que o paciente diga o que vem à mente e escolha a ordem dos fatos a serem relatados, os conflitos sentimentais como amor-ódio, a percepção das resistências em relação ao tratamento. Por outro lado, o analista se colocou no lugar do detentor do saber: para tudo havia explicação teórica incestuosa; o diagnóstico dado que estigmatizava o caminho da terapia não permitia ampliar possibilidades de intervenção e a mania de completar o que o paciente deveria dizer. Isso pode ter impedido Freud de perceber as fantasias contidas do conteúdo manifesto; os sentimentos invertidos (amor-ódio como deslocamento do afeto); a reedição do complexo de Édipo na atualidade (desejo incestuoso de obter a mãe e matar o pai); a percepção da verdade inconsciente contida nos sentimentos apresentados como o ódio, a vingança, a culpa, o medo, o amor, a raiva. Uma dinâmica importante que Freud deixa a desejar foi a falta atenção à transferência e principalmente na sua contratransferência (filho (paciente)-pai (analista) e pai(analista)-filho(paciente). Hoje sabemos da fundamental importância do tripé teoria-técnica-supervisão para impedir ou amenizar os efeitos da corriqueira contratransferência na clínica.

Outro caso importante no estudo da técnica psicanalítica freudiana é o Homem dos Lobos. Um rapaz de 18 anos com graves sintomas neuróticos como severa depressão, relação insatisfatória com o pai, disputa dessa presença com a irmã, fobias e perversidades, lembranças de cenas sexuais e prazerosas com a irmã outras pessoas, atividade masturbatória na infância e fortes retaliações em relação ao seu pênis, sua exposição ou manipulação.

Nesse caso a técnica utilizada valorizou os sonhos e a cena primária que originou o trauma neurótico. É muito interessante o estudo que Freud faz do caso e suas ligações com os complexos de castração e de Édipo, a importância de trabalhar o triângulo amoroso pai-mãe-filho; como percebe a resistência do paciente, os desencontros e desconexões do relato, as ambivalências presente nos sentimentos e vivências da rejeição, da inveja, do ciúme, do ódio e das disputas; os medos atuais que podem ter origem na castração e suas consequências na fase adulta. Mas outra vez há situações questionáveis e limitantes: a crença de que um sonho na infância iria ser recordado tal qual pelo adulto (não lembramos do sonho de ontem, imagina o de 12 anos atrás), a necessidade de explicar tudo para o paciente (analista que sabe tudo) e encontrar uma razão apenas no complexo de Édipo e de castração impedido de perceber o sadomasoquismo presente na relação paciente-analista, as fantasias do pacienta, a reedição dos afetos na atualidade inclusive na clínica e as vivências dramáticas e atuais do paciente que podem propiciar sintomas tão importantes quanto os que estão no passado real ou não.

Uma questão interessante a dizer e valorizar foi o esforço de Freud de dar um lugar à psicanálise. Assim, ele a desvincula da medicina priorizando à fala e a escuta do paciente tão válidas quanto medidas farmacológicas: o sujeito, por muito repetir, necessita recordar e elaborar para trabalhar outros campos que podem resultar em enfermidades (o psicossomático).

Outro ponto interessante é que Freud abre a psicanálise a leigos contanto que passe por formação séria e esteja sendo analisado. De uma vez por todas, ele desvincula a psicanálise da medicina. Nessa fase, Freud já está ampliando a teoria e suas consequências na técnica: Ego, Id e superego, a diferença dos complexos de castração e édipo entre meninos e meninas e a somatização de sintomas relacionados a dores psíquicas (o desejo reprimido).

Nessa ordem de ideias, sobre o tempo ou o término de uma análise, Freud diz que deve ser terminada quando o sujeito for capaz de trabalhar bem e amar, e o fim da análise se dá quando os dois envolvidos não se encontram mais. Porém, ele deixa em aberto o debate de outras possibilidades: o sujeito pode sofrer outro trauma e necessitar se analisar outra vez, outros conteúdos do mundo psíquico podem aparecer e o sujeito não saber lidar com isso, situações como luto, perdas e circunstâncias de diversas ordens podem acometer o sujeito e ele se vê necessitado de rever seus sentimentos, comportamentos e modo de colocar-se no mundo. Sou partidário de que sempre se poderá analisar-se mesmo com intervalos ou temporadas sem análise, porque sempre será possível e necessário rever o mundo interno e tudo o que aí está, afinal estamos manejando o inconsciente e sabemos de sua infinitude de processos. Não sei se a cura total existirá, todavia sempre há algo a ser elaborado e transformado. Por isso gosto de pensar na cura como transformação da dor e possíveis de preenchimento de lacunas existenciais, sentimentais e até inconscientes. Tudo sempre aberto e vulnerável, afinal a vida e o inconsciente sempre poderão nos surpreender.

Como vimos, critiquei as limitações de Freud em relação à comunicação e interpretação tendenciosos dos conteúdos latentes e manifestos trazidos pelo paciente. Há que dizer que o paciente é o único que pode dizer algo. Só ele sonha, senti, fantasia, transfere, sofre. Ele é o detentor da interpretação e do saber. Cabe ao analista ajudá-lo nesse movimento de elaborar seus traumas, medos, conflitos, afetos e sintomas. O que se comunica para o paciente nunca pode ser uma verdade dogmática. É um “como si”. Pois há que saber que a memória do paciente pode estar equivocada, por mais que ele acredite nela e sofra todos os efeitos do que diz e viva. Pertinentemente, que toda construção seja feita em conjunto e que mesmo assim poderá ser falha, parcial ou válida para aquela situação. Sempre haverá possibilidade ou necessidade de rever, retomar, reelaborar e transformar. Pois dentro do sujeito há um saber que ele não quer saber e, coerentemente, tenderá a escondê-lo. Esse lugar de ignorância e não saber tanto do paciente quanto do analista é o que mais nos interessa e fascina.