Por Sérgio Rossoni -
Em clínica psiquiátrica, o conceito de psicose é tomado a maioria das vezes numa extensão extremamente ampla, de maneira a abranger toda uma gama de doenças mentais, quer sejam manifestamente organogenéticas, quer sua etiologia permaneça problemática.
Na psicanálise, o interesse incidiu, em primeiro lugar, nas afecções mais diretamente acessíveis à investigação analítica, e dentro deste campo mais restrito que o da psiquiatria, as principais distinções são as que se estabelecem entre as perversões, as neuroses e as psicoses.
Neste último grupo, a psicanálise procurou definir diversas estruturas: paranoia e esquizofrenia, por um lado, e por outro a melancolia e a mania. Fundamentalmente, é uma perturbação primária da relação libidinal com a realidade que a teoria psicanalítica vê o denominador comum nas psicoses, onde a maioria dos sintomas manifestos são tentativas secundárias de restauração do laço objetal." (Laplanche e Pontalis – Dicionário de Psicanálise – Psicose – pg. 390).
Para entendermos o psicótico, é importante relembrarmos sobre a posição esquizoparanóide de Melanie Klein, onde o ego utiliza a cisão como mecanismo de defesa para lidar com suas ansiedades, buscando dispersar seus impulsos destrutivos.
“Na primeira infância, surgem ansiedades que obrigam ao ego criar mecanismos de defesa específicos. Neste período se encontram pontos de fixação de distúrbios psicóticos”. – (Inveja e Gratidão – Melanie Klein - pg. 20)
O nascimento representa a saída da plenitude, do nirvana. O mundo real se apresenta de forma grosseira e cruel, despertando sensações como o frio, a fome, bem como necessidades como urinar, defecar, etc. É preciso chorar para obter o alimento, ou anunciar suas necessidades, apontar dores, cólicas entre outros. Na percepção da dependência do outro para sobreviver, nasce a frustração. Essa experiência é sentida como causada por objetos externos. Impulsos destrutivos são dirigidos para este objeto externo, passando posteriormente para ataques sádicos ao corpo da mãe, enquanto parte destes impulsos permanece ligada à libido no interior do organismo.
Para Klein, as relações de objeto existem desde o inicio da vida, sendo o primeiro objeto o seio da mãe.
A primeira relação com o objeto implica em projeção e introjeção. As relações de objeto são moldadas pela interação entre os mecanismos de projeção e introjeção desde o inicio, bem como entre objetos e situações internas e externas. Esses processos participam na construção do ego, e do superego e preparam o terreno para o surgimento do complexo de Édipo na metade do primeiro ano de vida. (Inveja e Gratidão – Melanie Klein - pág. 21)
No entanto, da mesma forma que tais impulsos são projetados nestes objetos, imediatamente são introjetados novamente. Logo, estes objetos sentidos como mau (seio mau), passam a existir também no mundo interno.
Tais ataques a estes objetos faz surgir o medo de uma retaliação ou um contra ataque por parte destes, que passam a ser sentidos como persecutórios.
“A necessidade vital de lidar com a ansiedade força o ego arcaico a desenvolver mecanismos de defesas. O impulso destrutivo é parcialmente projetado para fora, e prende-se ao primeiro objeto externo, o seio da mãe. Outra porção deste impulso permanece ligado a libido no interior do organismo".
Porem, nenhum desses processos resolve o problema da perseguição e de ser destruído. Logo, sob a pressão dessa ameaça o ego tenta se despedaçar “. (Inveja e Gratidão – Melanie Klein - pág. 24)
O ego então faz uma cisão buscando como resultado a dispersão do impulso destrutivo.
Na cisão, este mundo interno ainda confuso, repleto de objeto introjetados é de certa forma organizado. De um lado, objetos maus, de outro objetos bons. O bebê então percebe o seio como bom (aquele que recebe amor e lhe protege), e seio mau (aquele que o persegue e é receptor de seus ataques sádicos). O mundo é divido entre bom e mau.
“O impulso destrutivo projetado para fora é vivenciado como agressão oral. Impulsos sádico- orais dirigidos ao seio da mãe. Depois vem os impulsos canibalescos com o início da dentição.
O bebê vai sugar e destruir o seio. Na sua fantasia, o seio mau é destruído, e o seio bom permanece inteiro. Esse seio bom interno é responsável pela construção do ego, e contrabalança os processos de cisão e dispersão. Winnicott descreveu este processo como a capacidade do bebê adaptar-se à realidade mediante a experiência obtida através do amor e carinho da mãe “. (Inveja e Gratidão – Melanie Klein –Processo de cisão em relação ao objeto- 1946- nota de rodapé 10 – pág. 25)
“A ansiedade e a frustração pode ameaçar a sensação que o bebê tem de ter dentro de si um seio bom. Logo, o bebê pode sentir que seu objeto interno bom está também despedaçado, pois fica difícil manter a cisão entre objeto bom e mau. O ego não consegue cindir objeto interno e externo sem que ocorra uma cisão correspondente dentro dele. Quanto mais o sadismo prevalece no processo de incorporação do objeto mais este é sentido como estando em pedaços e mais o ego corre o risco de cindir-se aos fragmentos desse objeto internalizado.” ”. (Inveja e Gratidão – Melanie Klein –Processo de cisão em relação ao objeto- 1946)
Assim, o processo de projeção e introjeção se torna um cíclico, presente em todo desenvolvimento do ser. Neste ponto, o meio ambiente terá sua parcela na introjeção de objetos bons ou maus, de acordo com a forma que este se apresentar. Um ambiente repleto de amor, atenção, carinho, etc., poderá ser sentido como objetos bons, aumentando o número de objetos bons internos. Do contrário, um ambiente violento, cheio de falhas materna, poderá ser sentido como objetos maus, igualmente aumentando o número destes objetos no interior do bebê.
O processo de cisão vem para organizar o que antes estava misturado. Agora, sentimentos bons são dirigidos ao objeto bom, enquanto ataques destrutivos dirigidos para os objetos maus.
Outros mecanismos de defesa são criados.
Através do processo de idealização, o objeto bom é exageradamente sentido como um protetor poderoso contra os objetos maus. Não se trata de um simples objeto bom. Agora, este objeto é MUITO bom. Na negação, a existência de um objeto mau é negada. Todas as sensações de frustração e dor são negadas. A realidade psíquica é negada. Na onipotência, o ser sente-se capaz de negar a própria realidade psíquica.
“A negação onipotente da existência do objeto mau e da situação de dor é, para o inconsciente, igual à aniquilação pelo impulso destrutivo”.
“Uma parte do ego, da qual emanam os sentimentos pelo objeto, é negada e aniquilada também”.
“Na gratificação alucinatória ocorrem dois processos inter-relacionados: a invocação onipotente do objeto e da situação de ideais e a onipotente aniquilação do objeto mau persecutório e da situação de dor; Esses processos se baseiam tanto na cisão do objeto como do ego”. (Inveja e Gratidão – Melanie Klein – A cisão em conexão com a projeção e a identificação -pág. 26)
Como vimos anteriormente, os ataques antes dirigidos ao seio da mãe passam a ser dirigidos para o corpo da mãe, já que seu corpo é percebido como uma extensão do seio.
Na sua fantasia, o bebê vai lançar para dentro do corpo da mãe excrementos nocivos e destrutivos, além de sugar o seio até exauri-lo. Partes excindidas do ego são projetadas para dentro da mãe. Estes excrementos terão como objetivo controlar e tomar possa do corpo desta. Uma vez contendo partes do self mau, a mãe agora é sentida como o próprio self mau. Passa a ser o self mau, sentido como objeto perseguidor.
Melanie Klein chamou este processo de identificação projetiva.
“Não são só as partes más do self a serem expelidas. Partes boas também. Logo, excrementos podem significar presentes, e as partes do ego projetadas para outra pessoa representam as partes boas, amorosas do self”.(Inveja e Gratidão – Melanie Klein – Identificação Projetiva -pág. 27)
“A identificação projetiva da origem a medos de ser controlado pelo objeto; Uma vez na fantasia o bebê projetando parte de seu self para dentro do objeto com o objetivo de possuir e controlar, começa a ter medo da retaliação – ser controlado. Ser perseguido dentro de seu próprio corpo pelo objeto introjetado e reintrojetado violentamente. O objeto reintrojetado é sentido como contendo os aspectos perigosos do self”. (Inveja e Gratidão – Melanie Klein – Identificação Projetiva -pg 30)
O medo de ser aprisionado e perseguido dentro do corpo da mãe (resultado da identificação projetiva) estão na base da paranóia.
“As relações esquizoides são de natureza narcísica. Eu projeto meu ideal do ego em outra pessoa. Passo a amar e admirar essa pessoa porque na verdade estou amando eu mesmo. Essa outra pessoa passa a ter as partes boas do meu self”. (Inveja e Gratidão – Melanie Klein – Relações de objetos Esquizóides -pg 32)
Controlar o outro, é controlar seu próprio self projetado no objeto. Quando este objeto é perdido, é sentido como se o próprio self tivesse sido perdido. Surge o sentimento de solidão e o medo de separar-se do objeto.
“O medo da frustração da separação, desperta a agressividade. Uma vez controlando com agressividade as partes boas do self projetadas dentro do sujeito, o objeto interno é sentido como correndo o mesmo perigo de destruição que o objeto externo, resultando num enfraquecimento do ego. Solidão”. (Inveja e Gratidão – Melanie Klein – Relações de objetos Esquizoides -pág. 33)
Ainda sobre a identificação projetiva, Hanna Segal a define como:
(processo através do qual uma parte do ego é excindida e projetada para dentro de um objeto, com consequente perda desta parte para o ego, bem como alteração na percepção do objeto.) (Melanie Klein hoje; Vol. I; Depressão no Esquizofrênico; Hanna Segal).
Através da identificação projetiva, o psicótico projeta suas ansiedades sentidas como algo insuportável.
Herbert Rosenfeld escreve em seu artigo “Conflito com o superego num paciente esquizofrênico”, a importância em se interpretar as transferências positivas e negativas, salientando que o êxito na análise depende da compreensão do analista das manifestações psicóticas na situação transferencial.
Rosenfeld ainda em seu artigo desenvolve a ideia de que o objeto bom internalizado aumenta a severidade do superego, e devido a exigências rigorosas, é sentido como um objeto persecutório.
“Na análise de pacientes esquizofrênicos – Podemos muitas vezes observar apenas os objetos persecutórios funcionando como superego. Isso pode ser devido às exigências extremas dos objetos idealizados. (Melanie Klein hoje Vol. I – Herbert Rosenfeld – Conflito com o superego num paciente esquizofrênico)”.
O psicótico toma muitas vezes tudo o que o analista diz como algo concreto. Se interpretarmos uma phantasia de castração, ele tomará a própria interpretação como uma castração. Trata muitas vezes a fantasia como realidade, e realidade como fantasia.
Quando projetado suas ansiedades para dentro de um objeto externo, via identificação projetiva, tal objeto passa a ser percebido como persecutório. Entretanto, ocorrerá uma introjeção deste objeto, sentido como uma reentrada violenta. Muitas vezes, o psicótico tentará romper a ligação com o mundo externo, temendo esta reentrada. No entanto, a introjeção deste objeto implica na existência deste tanto interno quanto externo. O objeto persecutório passa a existir na fantasia e na realidade.
“Todo paciente esquizo projeta seu superego e a si mesmo para dentro do analista; mas o analista interpreta esta situação e os problemas ligados a ela até que, gradativamente, o paciente seja capaz de aceitar tanto seu amor e seu ódio quanto o seu superego como coisas que lhe pertencem.” (Melanie Klein hoje Vol. I – Herbert Rosenfeld – Conflito com o superego num paciente esquizofrênico)
Freud aponta a psicose como o ego a serviço do id, que se retira em parte da realidade. Sobre este tópico, Bion escreve: “O ego não fica completamente fora da realidade. Seu contato com a realidade é mascarado pelo predomínio, na mente e no comportamento do paciente, de uma fantasia onipotente cujo propósito é o de destruir não só a realidade mas a percepção dela, e assim atingir um estado que não é vida nem morte”.(Melanie Klein hoje Vol. I – Herbert Rosenfeld – Diferenciação entre a personalidade psicótica e a não psicótica)
Segundo Bion, pacientes psicóticos possuem uma parte não psicótica da personalidade, que fica assim obscurecida por sua parte psicótica.
O afastamento da realidade é uma ilusão decorrente do uso da identificação projetiva contra o principio da realidade. Porém, esta fantasia torna-se um fato para o psicótico. A realidade odiada é fragmentada e projetada para fora. Estes objetos expelidos são sentidos como se tivesse vida própria, estando então o psicótico cercado por objetos bizarros.
A cisão e a identificação projetiva visa o afastamento da própria realidade. As palavras são tomadas como coisas reais, pois o psicótico não simboliza.
Hanna Segal escreve em seu artigo “Depressão no esquizofrênico – Melanie Klein hoje vol.1” sobre o processo pelo qual o esquizofrênico alcança a posição depressiva, vivenciando as ansiedades despertas durante este processo. No entanto, os sentimentos de culpa, sofrimento, são sentidos como intoleráveis. Assim, tais ansiedades depressivas serão projetadas para fora, ou seja, grande parte do seu ego será projetada para dentro de outro objeto através da identificação projetiva. Assim, o avanço para a posição depressiva no paciente esquizofrênico é sentido como uma ameaça. É preciso retomar o percurso contrário da sanidade, pois esta é acompanhada por sentimentos insuportáveis.
É comum o paciente psicótico projetar a parte deprimida do ego para dentro do analista, provocando sentimentos depressivos no analista. A parte sadia do ego é perdida, e neste caso, o analista torna-se objeto persecutório.
Hanna Segal aponta para a importância de colocar o paciente esquizofrênico em contato com seus sentimentos depressivos, e com o desejo de reparação que dele originam. É de suma importância que o analista descubra onde e em quais circunstâncias a parte depressiva do ego foi projetada, interpretando para seu paciente.
A identificação projetiva por um lado, constitui uma reação terapêutica negativa (RTN), cabendo ao analista acompanhar cuidadosamente durante a transferência, a emergência da posição depressiva e sua projeção, permitindo assim ao paciente fortalecer a parte sadia da personalidade. Por outro lado, a identificação projetiva é uma defesa contra a depressão.