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Dialética do sofrimento: a relação recíproca entre paciente e analista

Dialética do sofrimento: a relação recíproca entre paciente e analista

atePor Cilene Domitila Martins Poli - 

O presente projeto se propõe a estudar a relação, mais especificamente o compartilhamento de dor que ocorre entre alguns analistas e pacientes. Para tanto, introduz-se o tema da psicanálise e o cenário em que são feitos os atendimentos, já que é neste setting que ocorre a transferência do sofrimento, da dor psíquica; é aqui que reconhecemos a dialética deste fenômeno de compartilhamento, uma vez que alguns psicanalistas, profissionais, se veem divididos entre prática e teoria.

Para compreender melhor como se dá essa divisão, em um segundo momento nos concentramos em entender quais são estas teorias sobre o sofrimento, como ele se manifesta e quais são alguns dos principais teóricos que se debruçaram sobre o tema. Alega-se que a teoria muitas vezes não condiz com a prática e que muitas vezes, por também ser um ser humano, vivo, o analista pode sucumbir às máximas da neutralidade e abstinência; assim, tendo estudado a teoria, nos voltamos a prática e a realidade das sessões psicanalíticas – aqui focamos em mapear os principais meios para diminuir o abismo entre teoria e prática, também nos perguntando se os sentimentos dos analistas são de fato um empecilho.

PALAVRAS-CHAVE: sofrimento; posição do analista; abstinência; contratransferência e neutralidade. 

1. Introdução

1.1 Objetivo e Metodologia
O presente artigo surgiu do desejo de melhor compreender as transformações psíquicas vivenciadas por alguns analistas, no que diz respeito ao sofrimento que, muitas vezes, é compartilhado com o paciente. Assim, a proposta deste trabalho é oportunizar uma reflexão sobre este sentimento e o papel do analista de acordo com os princípios da Psicanálise.

Para tanto, a metodologia utilizada é uma junção das experiências pessoais obtidas ao longo do curso com a pesquisa bibliografia, feita por meio da leitura e análise dos princípios teóricos e técnicos da psicoterapia psicanalítica.

1.2 Tema
A Psicanálise, assim como todas as ciências, busca uma suposta objetividade para pensar seu objeto de estudo. Assim como o físico estuda os fenômenos da natureza, tendo uma nítida separação entre aquele que está estudando (sujeito) com aquilo que está sendo analisado (objeto), alguns analistas, durante o atendimento, também buscam por uma suposta “neutralidade”, tentando muitas vezes colocar o paciente no mesmo patamar de um fenômeno físico. No modelo científico a intenção é conhecer o objeto; no modelo psicanalítico a intenção é conhecê-lo para transforma-lo, entretanto, a intensa interação entre analista e analisando é o que diferencia a situação analítica da experiência física, científica – e essa interação borra a diferença entre observador e observado, entre sujeito e objeto (ARMONY, 2013).

É o caso de alguns psicanalistas que, durante o decorrer do atendimento, acabam se fundindo ao pensamento do seu objeto de estudo. Essa junção resulta no “sofrimento”, o que por consequência estabelece uma nova relação entre sujeito e objeto, um possível compartilhamento do sentimento; isso se deve ao fato do objeto de estudo do psicanalista ser o próprio ser humano, fazendo com que várias vezes este analista acabe se identificando com seu objeto de estudo, já que, de acordo com Armony (2013), o profissional deve ter a capacidade de se identificar e ter empatia com o analisando, sendo capaz de perceber os seus próprios dinamismos psíquicos em referência a si.

A partir dessa relação entre sujeito e objeto, compreendo que durante o atendimento podemos dizer que há uma relação dialética do sofrimento. Isso porque a dialética supõe que há uma tese que vai ser negada (antítese) produzindo uma síntese;  durante o atendimento podemos dizer que há uma suposta objetividade (tese) que é negada com a identificação do analista com seu objeto (antítese) produzindo uma nova relação entre o paciente e o psicanalista (síntese). Na prática, isso significa que, no começo da análise, alguns psicanalistas procuram estabelecer uma distância perante o sofrimento do paciente, justamente para tentar mimetizar a metodologia das ciências físicas. Entretanto, o pensamento do psicanalista, influenciado pela dor do paciente, pode resultar em uma assimilação do psicanalista com o analisando, resultando em uma nova relação entre os dois.

No caso desta nova realidade há, o tempo todo durante o atendimento, uma relação recíproca com o sofrimento. O sofrimento psíquico do paciente pode prejudicar a posição do psicanalista, provocando o sofrimento do mesmo; essa interferência muitas vezes pode prejudicar os atendimentos, uma vez que o analista corre o risco de ficar aprisionado na demanda do paciente. A partir disso, os principais desenvolvimentos deste trabalho se debruçam sobre as seguintes perguntas: como podemos pensar o sofrimento psíquico? O analista tem recursos técnicos para não se contaminar?

2. A dialética do sofrimento

2.1. A teoria do sofrimento
De acordo com o dicionário etimológico, a origem da palavra “sofrer” deriva do latim sufferre, termo pelo qual os velhos romanos designavam quem estava "sob ferros", acorrentado, submetido à força - fosse escravo ou prisioneiro. Assim, o entendimento do popular "sofrimento" é: palavra pela qual melhor se traduz, em português, a infelicidade contínua e intensa e, no momento em que ocorre, irremediável. É justamente o vocábulo que designava a opressão, a submissão, a situação da criatura submetida ao poder de outrem que, como coisa ou "ferramenta", sofre todos os infortúnios capazes de lhe "ferir" (machucar) corpo e alma.

Na psicanálise esse entendimento pode deixar a realidade física e migrar para o ambiente mental, emocional. Antes de Freud, o sofrimento psíquico não tinha uma compreensão subjetiva, a sua interpretação era norteada por duas visões: a visão médica, associada a problemas físicos e a visão moral, definida pela doutrina religiosa, atrelada a uma intervenção disciplinar. No entanto, Freud acreditava que o sofrimento humano era mais abrangente, podendo surgir de três caminhos diferentes: da soma, do mundo externo e/ou do convívio com outras pessoas; a partir disso, a clínica da histeria foi o primeiro caso de sofrimento psíquico a inaugurar o tratamento psicanalítico, validando a existência de uma autonomia do sofrimento psíquico.

Complementando a subjetividade defendida por Freud, Duncker (2012) entende que o sofrimento humano é universal, mas não é idêntico ao longo do tempo e nem igual para todas as culturas. O sofrimento é uma emoção particular motivada por qualquer condição que submeta o nosso sistema nervoso ao desgaste de maneira consciente ou inconsciente - haveria um elo com a liberdade que foi perdido e que necessitaria ser reinventado. Para o autor, a natureza da experiência do sofrimento se transforma conforme falamos dele ou não, a exteriorização desse sentimento seria uma espécie de enlaçador social, uma ligação que tende a tocar o Outro e, por isso, o sofrimento aproxima as pessoas, é uma qualidade da empatia dos seres humanos.

Outra expoente contemporânea que se dispôs a investigar sobre a dor e o sofrimento foi a psicanalista portuguesa Manuela Fleming (2003). Fleming defende em seu livro “A dor sem nome: pensar o sofrimento” a ideia de que onde existe a dor existe a busca, existe a procura pelo Outro, já que o sofredor procura ser escutado, procura o contato, as palavras, procura, por fim, uma linguagem que contenha a dor e a torne suportável; esta dor necessita sentido e compartilhamento para ser sentida. Essa compreensão de Fleming está em linha com a exteriorização do sofrimento estudado por Duncker, que também a entendia como a busca pelo Outro pra validar o sofrimento.

Fleming define a sessão de análise como “uma escuta das dores mentais”, já sendo esperado que o sujeito adentre a clínica psicanalítica procurando respaldo para as suas dores e sofrimentos. Durante essa análise, por inúmeros momentos, alguns pacientes permanecem “surdos”, incapazes de digerir qualquer contribuição do analista, que tem sua função reduzida a “acolher, receber e conter, o que inevitavelmente coloca o analista perante os seus próprios limiares de tolerância à dor mental” (2003, p. 107).  Em termos gerais, o analista acolheria o sofrimento do paciente e, ao reconhece-lo, o validaria como verdadeiro, respeitando toda a sua singularidade ao ser sensível diante de sua demanda. Essa interação entre identificações projetivas e introjetivas entre analista e analisando são muito importantes na clínica contemporânea, pois um depositará no outro seus objetos internos, experiências e fantasias inconscientes. Espera-se que, durante o processo analítico, o analista tenha, no mínimo, condições de regredir com o paciente, para melhor entendê-lo, mas logo voltar ao normal. (SILVA FILHO, 2002).

Com base nos autores apresentados acima, compreendemos que a pessoa do analista é o guardião do setting, mas este, por também ser humano, está sujeito as ressonâncias advindas do sofrimento do paciente. É uma posição desafiadora, esta de guardião neutro, uma vez que exige que o analista esteja sempre vigilante e domine as técnicas psicanalíticas, a fim de manter-se vivo diante das demandas – essencial para sustentar o atendimento durante o período necessário para o paciente.

2.2. O sofrimento na prática

Apesar do entendimento dos procedimentos e limites de uma análise, entendo que, em alguns momentos, a teoria psicanalítica se distancia da pratica vivenciada nos atendimentos. Não é suficiente entender os teóricos do sofrimento e os limites pré-estabelecidos como um check-list, uma lista de afazeres a ser seguida; sendo assim,  considero importante pontuar algumas regras da teoria psicanalítica que auxiliam o analista a separar os conteúdos internos do paciente e dos seus próprios.
Com a intenção de orientar esse processo analítico, Freud deu ênfase a quatro regras mínimas para se conduzir o atendimento psicanalítico: a associação livre (regra fundamental), a atenção flutuante, a abstinência e a neutralidade. Enquanto a associação livre e a atenção flutuante focam em fazer com que o conteúdo inconsciente do paciente emerja durante o processo analítico, acredito que a abstinência e a neutralidade, por lidarem diretamente com o relacionamento interpessoal, se relacionem mais diretamente com o compartilhamento do sofrimento - sendo assim, neste artigo, foca-se no entendimento destas duas últimas regras em especial.

A regra de abstinência refere-se à necessidade do analista de se abster de qualquer tipo de atividade que não seja unicamente o da interpretação, preservando ao máximo o seu anonimato e evitando qualquer gratificação externa (ZIMERMAN, 2004). De acordo com Laplanche e Pontalis (2001) o analista deve conduzir o tratamento de uma maneira que o paciente encontre menores possibilidades de satisfação substitutiva para aos seus sintomas. Napoli (2014) comenta que, segundo a visão freudiana, é preciso recusar a demanda de amor do paciente, mantendo o doente em um estado de insatisfação suficientemente bom, com a intenção do recalcado permanecer se manifestando, tornando-se objeto da consciência. A ideia é reforçada no congresso de Budapeste, em 1918, quando Freud justificou teoricamente a regra de abstinência afirmando que “por mais cruel que possa parecer, devemos fazer o possível para que o sofrimento do doente não desapareça prematuramente de modo acentuado” (LAPLANCHE e PONTALIS, 2001, p.3).

Nota-se que a visão clássica freudiana tem a intenção de aumentar a tensão psíquica do paciente, frustrando a sua demanda e, por consequência, facilitando o surgimento dos conteúdos recalcados.  Zimerman (2005), por sua vez, sintetiza a regra da abstinência afirmando que a melhor forma de o analista atender as demandas do paciente é a de entender e interpretar o “por quê” e “para que?” delas.

Outra regra citada por Freud que neste artigo se faz igualmente importante à abstinência é a neutralidade. Segundo o Vocabulário da Psicanálise Laplanche e Pontalis (2001),  a neutralidade é o que deveria definir a atitude do analista no tratamento, o profissional deve ser neutro em relação a quaisquer valores, sejam estes religiosos, morais ou sociais; o psicanalista deve se manter neutro frente às manifestações transferenciais, ou seja, não deve entrar no jogo do paciente, mantendo-se neutro quanto ao discurso do analisando.

Em seu texto “Neutralidade e Psicanálise”, Armony (2013) comenta que o analista tem a obrigação de impedir que a sua subjetividade contamine as manifestações do inconsciente do paciente. Este é um requisito para o analista ter certeza de que as suas percepções, interpretações e intervenções estariam associadas unicamente com o paciente, sendo o analista apenas um reflexo - para compreender melhor essa ideia, podemos nos debruçar sobre a “metáfora do espelho”, citada por Zimerman (2005). A metáfora seria a representação do cenário analítico em que o “o psicanalista deve ser opaco aos seus pacientes e, como um espelho, não lhes mostrar nada, exceto o que lhes for mostrado”; a visão freudiana de um “analista-espelho” e de opacidade não significa, necessariamente, um descaso ou uma frieza emocional por parte do analista, trata-se apenas de uma recomendação para que o analista não seja transparente, não se deixe expor os seus próprios sentimentos. A partir disso, é possível compreender que o analista não deve se posicionar, durante o atendimento, como uma pessoa que esta se relacionando com outra – é necessário que ele esteja “apagado”, a fim de criar condições para que o inconsciente se faça presente.

No entanto, esta postura freudiana suscitou em alguns autores como Winnicott e Ferenczi um olhar diferenciado sobre neutralidade, já que ambos entendiam que os sentimentos do analistas, durante o atendimento, têm seu valor para a análise. Nas palavras de Ferenczi, “não será natural, e também oportuno, ser francamente um ser dotado de emoções, ora capaz de empatia, ora abertamente irritado? O que quer dizer: mostrar-se sem disfarces, tal como se exige do paciente” (1932, p.132). Do ponto de vista ferencziano, o analista precisa fazer uso da empatia e se posicionar não mais em uma posição de neutralidade e objetividade, mas deve demonstrar sintonia, respeitando e sentindo o sofrimento que lhe é dirigido (NAPOLI, 2014); este entendimento de neutralidade está em linha com Zimerman, visto que o autor acredita que a máxima do analista neutro seja uma ilusão, impossível de ser atingida já que o analista é um ser.

Ainda não citado, existe um terceiro aspecto requisitado dos analistas, tão importante quanto a neutralidade e abstinência: a contratransferência. De acordo com Laplanche e Pontalis (2001), a contratransferência diz respeito as reações conscientes e inconscientes do analista para com o analisando - na prática analítica é considerada como um dos fenômenos mais fundamentais e carregado de muitas controversas. De um lado, existe a defesa freudiana de que a contratransferência é um fenômeno que atrapalha o processo da análise, uma forma marcante de resistência; do outro, existem interpretações que consideram o fenômeno digno de estudo e entendimento, Zimerman (1999) acredita que a mesma abre uma nova possibilidade de escuta: a escuta da própria emoção do analista em frente a verbalização do paciente. Mesmo anterior a Zimerman, Heimann (1950) sempre observou a contratransferência como uma ferramenta de análise positiva e valiosa, “minha tese é que a resposta emocional em correlação a seu cliente dentro da situação analítica representa uma das mais importantes ferramentas de seu trabalho. A contratransferência do psicanalista é um instrumento de pesquisa sobre o inconsciente de seu paciente” (idem, p. 28).

Para Ferenczi (1992) quando o analista se afasta de uma posição relativamente segura oferecida pela neutralidade e abstinência, ele adota uma posição de “parceria”, no sentido de ter disponibilidade afetiva, transformando-se, metaforicamente, na figura do “João Teimoso”, visto que receberá vários movimentos afetivos, de agressivos a amorosos, mas conseguirá retornar a posição original e assim ser capaz de sobreviver a esses movimentos. Ferenczi faz a seguinte descrição:

O analista no tratamento deve prestar-se, às vezes durante semanas, ao papel de “joão teimoso”, em quem o paciente exercita seus afetos de desprazer. Se não só não nos protegermos, mas, em todas as ocasiões, encorajarmos também o paciente, já bastante tímido, colheremos mais cedo ou mais tarde a recompensa bem merecida de nossa paciência, sob a forma de uma nascente transferência positiva (1992, p.35).

Dessa forma, a contratransferência é, sem dúvida, mais um aspecto que deve ser considerado na tentativa de entender a dialética do sofrimento que pode ocorrer entre alguns analistas e pacientes. À primeira vista e na contramão das regras de abstinência e neutralidade, a contratransferência pode se tornar uma realidade quando alguns psicanalistas falham em estabelecer limites psíquicos na sua relação com o analisando. É, no entanto, uma ferramenta que pode se fazer positiva ou negativa dependendo dos recursos internos e técnicos do analista, no sentido de compreender o que é mais efetivo individualmente para seus pacientes.

A fim de explicitar este sentimento, compartilho uma vivência pessoal sobre o fenômeno de contratransferência em um dos meus atendimentos. O paciente em questão chama-se Nelson (nome fictício), tem 45 anos, é casado e trabalhou durante quinze anos como agente penitenciário em um presídio de segurança máxima, mas há seis anos é professor concursado do ensino médio da rede municipal e estadual. Nelson enfrentou alguns problemas pessoais na escola municipal que lhe tiraram o prazer de lecionar na mesma, mas sentia-se obrigado e acorrentado à esta realidade, já que estava prestes a se aposentar.

A sua expectativa diante da terapia era resolver sua grande insatisfação diante da própria vida, uma vez que não se via com capacidade de ser e fazer o que realmente desejava. Transcrevo abaixo um trecho do nosso primeiro encontro:

Nelson: Tenho a sensação de que muito pouco realizei. Começo, mas não persevero; muitas das vezes sequer começo: fico apenas no campo das ideias porque vários fatores me impedem de realizá-los. Hoje consigo identificar o fator maior que é minha doença; consigo vislumbrar algumas formas tênues para driblá-la, mas falta dar alguns passos para efetivamente realizar aquilo que eu sou. Veja bem: aquilo que eu sou, pois não me vejo como alguém que seja, mas sim como alguém que "gostaria de ser mas não é". Não se trata de "ser o que quero ser", muito mais que isso, trata-se de me sentir realizando a minha própria existência: não me vejo; não me reconheço; não realizo; apenas sou aquele que "gostaria ser" mas que não é. É como se minha existência se resumisse a um "não ser". Você entendeu tudo o que eu te disse? Você é uma profissional, então você deve ter uma solução para este tipo de problema?
Neste momento, tive a percepção de que o paciente depositava em mim toda a responsabilidade das suas atitudes e escolhas. Frente a isso, acabei respondendo que “talvez a minha resposta não te agrade muito, pois não tenho soluções mágicas e imediatas, nem uma receita pronta para lhe oferecer”. A resposta, realmente, não lhe agradou e Nelson alegou que precisava de uma orientação mais eficaz, que teria que avaliar se valeria a pena fazer terapia; não consegui nem me despedir dele que, diante da minha resposta, se irritou e desligou o Skype. Minha experiência emocional no momento foi de fracasso profissional, já que não havia tido condições de levar o atendimento a um término mais conciliador - vivi uma semana com um superego me condenando por não ter oferecido um acolhimento adequado.

Nelson decidiu continuar o tratamento e, naturalmente, situações como essa se mantiveram durante algumas sessões. As angústias contratransferências e um superego feroz dificultaram as minhas interpretações diante da demanda do paciente; em determinadas ocasiões os rompantes agressivos do paciente com a sua família pareciam ser redirecionados a mim.  No nosso terceiro encontro, contou com raiva e mágoa que havia expulsado a família de casa; a expulsão se deu porque já tinha os avisado que precisava de privacidade para falar comigo, sem que ninguém o escutasse – ele precisava de um momento só dele e os familiares foram obrigados a esperar no quintal. Essa situação de abandono e “expulsão” se deu novamente em uma outra ocasião enquanto acompanhava a filha em uma loja, mas como a filha demorava e seu horário de atendimento estava se aproximando, Nelson acabou deixando-a na loja sem lhe dar qualquer satisfação.
Nestes dois momentos fiquei surpresa com os sentimentos variados que tomaram conta de mim, me transferi para o lugar da esposa e me senti indignada com a atitude do paciente; imaginei a raiva e a desilusão da filha diante da atitude de abandono do pai. Foram experiências contratransferênciais difíceis que me provocaram muita irritação, o que, por consequência, me fez condenar, internamente, as decisões de Nelson como negativas.

Com o auxílio da supervisão e da análise pessoal percebi o quanto o meu raciocínio clínico estava ficando contaminado, afetando o manejo terapêutico; com a supervisão consegui compreender que as atitudes agressivas e hostis com a família eram, na verdade, um comportamento saudável e compreensível, uma tentativa de ocupar um espaço que fosse seu. Era o ser que ele tanto procurava.

3. Conclusão:
A partir do entendimento do tema e da divisão do sofrimento em duas principais vertentes - a teórica, no que diz respeito ao que ele significa, e a prática, quando tentamos lutar contra este sentimento -  é possível que nos debrucemos sobre algumas conclusões sobre o assunto. Em primeiro lugar, compreendemos que o sofrimento é uma emoção universal, que se estabelece de maneira singular no ser humano mas, ao mesmo tempo, é importante que nos preparemos para acolher a demanda dessa emoção da melhor forma possível.

Inserir o sofrimento no contexto analítico e alia-lo as regras de abstinência, de neutralidade e do fenômeno da contratransferência mobilizam questões emocionais muito delicadas, nos levando sempre a questionamentos sobre a prática psicanalítica. Seja equiparando a psicanálise ao estudo das ciências quantitativas ou não, Fleming (2003) lembra que, para Bion, a possibilidade de psicanalisar depende da condição do analista de suportar a dor mental – o que revela o pressuposto de que a dor e o sofrimento pode ser amortecido, diminuído mas dificilmente blindado; de acordo com Semer (2008), é esse reconhecimento da dor psíquica que possibilitará ao analista o reconhecimento e a elaboração das emoções contratransferênciais, sem o perigo da ação ou da paralisia.

É oportuno lembrar que a Psicanálise prima a busca pela verdade, um elemento libertador e essencial para o crescimento psíquico. A busca é personificada na figura da “pessoa verdadeira” (ZIMMERMAN, 2005), que tem amor pelas verdades, por mais difíceis que estas sejam, logo seria importante transferir o modelo da verdade para o paciente, já que esta é justamente o caminho para o sujeito vir a ser. Por esta razão, quando minha consciência tenta combater as emoções de sofrimento vivenciadas no setting terapêutico, recorro ao posicionamento técnico de Ferenczi. Defensor de uma verdadeira elasticidade da técnica psicanalítica, o autor entende que o analista não poderia ser visto como um lugar, uma função ou até mesmo como um vazio, isso porque o analista é dinâmico e é, antes de tudo, uma pessoa que constitui uma relação real com o paciente. Assim, se o analista tentar ocultar do analisando as suas emoções produzidas durante o processo analítico, ele estará impossibilitando o estabelecimento de uma relação autêntica, verdadeira (NAPOLI, 2014). Para Ferenczi existia uma “hipocrisia profissional” em alguns analistas, aqueles que nunca expressavam as suas emoções para não corromperem com a neutralidade; o autor compreendia a necessidade da empatia e da sintonia diante do sofrimento do Outro, abrindo mão de um posicionamento neutro e objetivo e dando lugar a uma atitude terapêutica espontânea e verdadeira.

Paciente e analista são duas pessoas reais com as suas inevitáveis limitações e angústias, assim, tornou-se consensual entre alguns psicanalistas contemporâneos que há uma impossibilidade de continuar concebendo o modelo unipessoal no setting. Uma parte dos profissionais acreditam que tampouco é possível que a análise seja linear e sequencial, uma vez que esta consiste num modelo dialético entre analista e analisando, onde as teses, sofrimentos, apresentadas pelo analisando são confrontadas com as antíteses, perguntas, propostas pelo analista, de modo que resultam em sínteses (insights), transformações, que funcionam como novas teses, caminhos (ZIMERMAM, 1999). De toda forma, independente do posicionamento dos autores – contra ou a favor do compartilhamento do sofrimento – é possível concluir que há uma concordância ao afirmar que o sofrimento, dentro do processo analítico, acarreta mudanças mútuas no par analista-analisando. Estas mudanças geram resultados únicos e nunca replicáveis, e cabe ao analista estabelecer seu modus operanti para garantir que sua qualidade humana não atrapalhe o resultado da análise; ferrenho seguidor da abstinência e da neutralidade ou não, que seja eficaz no gerenciamento de emoções, tanto as suas quanto a dos Outros.


4. BIBLIOGRAFIA
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