Por Silvio Ribeiro da Silva -
O caso Dora é um caso emblemático na história da Psicanálise e na constituição profissional de Freud. O próprio Freud assinala que este caso foi o primeiro em que ele fez uso de aportes técnicos da Psicanálise, aportes que ainda são conhecidos até hoje. Foi escrito entre dois outros grandes trabalhos do médico: ‘A Interpretação dos Sonhos’ e ‘Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade’. Trata-se de uma paciente histérica, mas não a primeira, porque antes de tratar Dora Freud já apresentara publicações com Breuer sobre outras histéricas.
O tratamento de Dora foi feito com base na associação livre, técnica inaugurada por Freud a partir de sua percepção sobre a ineficácia da técnica da hipnose. Por mais que a técnica da associação livre consista em permitir que a pessoa fale sobre aquilo que vier à mente, no caso Dora percebe-se um Freud ainda muito apegado à sugestão, encaminhando as ideias de sua cliente a questões ligadas à sexualidade (carro-chefe da teoria psicanalítica de Freud e considerada a etiologia da histeria). Cabe comentar que neste momento da constituição da Psicanálise a sexualidade era voltada para o campo genital quase que exclusivamente.
A associação livre no caso Dora foi fundamental. Pode-se perceber isso no relato dos dois sonhos trazidos para o setting, quando a cliente de Freud deveria falar associativamente acerca dessa construção psíquica passível de interpretação. O relato dos sonhos foi material fundamental para o tratamento dirigido pelo analista, embora o segundo sonho não tenha tido a interpretação concluída devido à desistência de Dora do tratamento.
Ainda que seja possível notar que o caso Dora colaborou muito com a técnica da Psicanálise, pode-se observar que foi também importante para a prática da teoria, uma vez que Freud se utilizou do relato dos sonhos, como já dito, para tentar desenrolar o novelo que era (e é em todas as pessoas) o inconsciente de sua cliente.
A transferência foi um dos aspectos bastante observados no caso Dora. Ela foi percebida sob mais de um viés. Em um deles, houve a transferência negativa de Dora em relação a Freud, tanto que ela desistiu do tratamento antes de sua conclusão. Essa desistência foi crucial para que o pai da Psicanálise percebesse mais tarde a necessidade de aperfeiçoamento da técnica em relação ao manejo desse aspecto tão importante para a Psicanálise, uma vez que Freud acabou deixando de lado a relação transferencial que estava ocorrendo entre ele e Dora, permitindo que esta relação interferisse a ponto de motivar sua cliente a, como dito, desistir da análise.
A percepção de Freud a partir de Dora de que sua técnica carecia de revisão e aperfeiçoamento foi tão marcante que tempos depois ele publica o texto com recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. Dentre essas recomendações, está evitar intimidade com o analisando justamente por que isso pode dificultar a resolução da transferência, uma das principais tarefas do tratamento psicanalítico na visão de Freud. Em outra publicação posterior ao caso Dora (Sobre o Início do Tratamento), fala de novo sobre a transferência e sobre a resistência (também já abordada no texto sobre as recomendações aos médicos).
O conceito de transferência foi o mais relevante trazido pelo caso Dora por mostrar como o analista desempenha um papel fundamental na sua relação com o analisando. Quando Freud se recusou a ocupar este papel, acabou por impor uma resistência à análise, instaurando uma transferência negativa. O que o caso Dora trouxe para Freud e para a Psicanálise de esclarecimento sobre a transferência foi o entendimento de que, em sua neurose, o analisando transfere para o analista sua carga de fantasias libidinais residentes no universo inconsciente, fazendo do analista o depositário de parte de sua vida afetiva reprimida e que, justamente por conta da resistência, foi impedida de ser evocada conscientemente.
Ainda sobre a transferência, tão relevante no caso Dora, anos após este caso, Freud traz à tona o texto sobre recordar, repetir e elaborar, introduzindo o conceito de neurose de transferência, subordinando a transferência à ideia de repetição. Aqui, a transferência é tratada como um fragmento da repetição, agindo a serviço da resistência. O próprio Freud diz que se a resistência for muito intensa, maior será a atuação substituta do ato de recordar. No caso Dora, pela sua desistência, não houve tempo de colocar em prática esta tríade tão relevante para o processo psicanalítico.
No texto sobre o recordar, repetir e elaborar, Freud aborda a elaboração, discutindo se tratar de erro considerar a superação das resistências o fato de revela-las até que se tornem familiares. Para ele, o analisando precisa de tempo, com o qual poderá conhecer melhor sua resistência a partir do momento que esta se lhe torna familiar. A partir desta familiarização, poderá ser possível a elaboração para a superação a partir do trabalho analítico. No caso Dora, pela falta de manejo de Freud com a questão da transferência, o que acabou se tornando para ela uma resistência, levando-a a desistir do tratamento, esse tempo para a familiarização e posterior vencimento da resistência não houve.
Por mais que o caso Dora tenha aberto para Freud as portas para o entendimento de dois aspectos importantes para a Psicanálise (a transferência e a resistência), foi apenas anos mais tarde que ele detalhou mais a seu respeito no texto “A dinâmica da transferência” (1912). Uma das questões desenvolvidas por ele texto diz respeito a porque a transferência acaba sendo fator de resistência. Assim, apesar de o caso Dora não ter sido exitoso para Freud, ele foi fundamental para que ele pudesse rever e aperfeiçoar a técnica da Psicanálise, bem como ampliar a visa teórica da referida, o que pode levar à conclusão de que não houve um fracasso, mas a oportunidade para um avanço.